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Violência contra mulheres aumentou com medidas de combate à Covid-19 em Moçambique


Relatório da Amnistia Internacional analisa situação em Moçambica, África do Sul, Zimbabwe, Madagascar e Zâmbia

As restrições impostas pelo combate à pandemia da Covid-19 transformaram certos lares em alguns países da África Austral em enclaves de crueldade, estupro e violência para mulheres e meninas presas por membros abusivos da família.

A denúnica é da Amnistia Internacional (AI), que aponta a falta de meios de escape e de apoio às vítimas, num relatório divulgado nesta terça-feira, 9, intitulado “Tratadas como Peças de Mobília – A violência de género e a resposta à Covid-19 na África Austral”.

Moçambique é um dos países que menos protecção oferece às mulheres, tendo sido alvo de violência, inclusive nos transportes públicos.

“Estereótipos de género prejudiciais embutidos em normas sociais e culturais, que sugerem que as mulheres devem sempre se submeter aos homens ou que um homem que bate na sua esposa o faz porque ele a ama, têm alimentado o aumento da violência contra mulheres e meninas em Madagascar, Moçambique, África do Sul, Zâmbia e Zimbabwe”, diz a nota assinada pelo director da organização de defesa dos direitos humanos para a África Oriental e Austral.

Além da escalada da violência, as medidas de combate à Covid-19, de acordo com Deprose Muchena, “também ampliou a estrutura existente de problemas como pobreza, desigualdade, crimes, aumento de desemprego e falhas sistemáticas na justiça criminal”.

O estudo da AI conclui que com as “medidas de confinamento, as mulheres não puderam escapar de parceiros abusivos ou sair das suas casas em busca da protecção” e, para complicar ainda mais esse cenário, activistas e organizações que trabalham na protecção e apoio às mulheres não foram consideradas um "serviço essencial”, não podendo, por isso, ajudar.

Violência cultura e fim de rendimentos em Moçambique

Em Moçambique, um activista lembra que “as raparigas aprendem que os maridos só batem nas suas mulheres quando as amam”, um fundamento cultural que justifica a violência doméstica.

O relatório assinala que a entrada em vigor do estado de emergência resultou numa crise económica, “em particular para os agregados familiares que viviam na precariedade” e que subsistiam através da economia informal.

As mulheres, na sua maioria empregadas domésticas, viram os seus rendimentos “absorvidos em despesas imediatas” e as “suas fontes de rendimento secaram”, tornando a vida ainda mais difícil.

Da mesma forma, “a redução nos rendimentos familiares intensificou a frustração, a tensão e o stress nas famílias”.

A directora executiva do Fórum Mulher, Nzira de Deus, é citada no estudo como tendo registado um aumento do número de relatos de violência de género na televisão e rádio.

Nos transportes públicos, a AI escreve que a redução da oferta deixou “as mulheres expostas à violência de género” e, como exemplo, o relatório apresenta “o caso da empregada do hospital central de Maputo, que chegou ao seu bairro a altas horas da noite devido à escassez dos transportes públicos, a 31 de Maio de 2020, e foi roubada, torturada, violada e assassinada”.

Sem onde recorrer

A organização ainda cita várias barreiras colocadas às vítimas de violência de género para a justiça, nomeadamente a falta de confiança no sistema judicial e o trauma secundário, que surge quando relatam os casos às autoridades.

Ainda em Moçambique, muitas vítimas temem apresentar queixas contra os seus parceiros e abrir o inquérito policial, “devido à pressão da sociedade em tolerar a violência doméstica, a dependência financeira do perpetrador e a falta de confiança no sistema judicial”.

Deprose Muchena diz ser “chocante que para muitos na África Austral o sítio mais perigoso para se ser uma mulher ou uma rapariga durante a pandemia da Covid-19 seja em casa” e afirma que os líderes da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) “devem assegurar que a prevenção e a protecção das mulheres de violência de género e de violência doméstica são uma parte integral das respostas nacionais a pandemias e outras emergências”.

Aumento de casos

Na África do Sul, na primeira semana de confinamento, a polícia relatou ter recebido 2.300 chamadas de ajuda e, em meados de junho de 2020, 21 mulheres e crianças foram mortas por parceiros e familiares.

No Zimbabwe, uma organização de protecção de mulheres sobreviventes de violência, documentou 764 casos de violência de género nos primeiros 11 dias do confinamento.

A 13 de junho de 2020, o número tinha aumentado para 2.768.

Nos outros dois países analisados, em Madagascar, o aumento da pobreza foi um factor importante para o aumento da violência de género, com mulheres e meninas a ficarem ainda mais pobres e economicamente dependentes de parceiros abusivos e, portanto, mais expostas a abusos.

Zâmbia foi o único país que registou uma ligeira diminuição da violência, com uma queda de 10 por cento no primeiro semestre, em relação a 2019, embora a Young Women's Christian Association tenha notado um ligeiro aumento da violência.

O relatório de 45 páginas analisa os pontos de intersecção entre a violência de género, as respostas à pandemia, as práticas socioculturais e as barreiras à justiça na África Austral.

O documento coloca, em última análise, em evidência a falha dos governos na África Austral na protecção dos direitos humanos das mulheres e raparigas durante a pandemia.

A AI apresenta uma série de recomendações, muitas delas feitas no passado, mas negligenciadas.

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