“O dia foi de festa em Capanda. Nessa época do ano, ao amanhecer uma espécie de névoa encobre a barragem e as águas revoltas do rio Kwanza e cria uma atmosfera de sonho. Os que se tinham empenhado com teimosia para a realização daquele projeto faziam contas à vida e não despregavam a vista do local. Angola estava finalmente em paz e havia a perspectiva de desenvolvimento com disponibilidade de energia.”
Assim o vistoso livro publicado pela Odebrecht em celebração dos 25 anos no país descreveu o enchimento do reservatório da hidrelétrica de Capanda em 2002. As cerimônias não acabaram aí; em 2005, duramente os eventos de celebração de 30 anos desde a independência, José Eduardo dos Santos e diversos ministros inauguraram a primeira fase da barragem da hidrelétrica. Cinco anos depois, em 2010, o presidente voltou para inaugurar o arranque das primeiras turbinas.
A promessa, como já se viu, não se concretizou: mais de dois terços da população angolana seguem sem luz. Mas a história de Capanda, primeira grande obra da empreiteira no país, ainda hoje é recontada em tons épicos na literatura institucional da Odebrecht.
Para ganhar o contrato, a empresa contou com apoio da ditadura brasileira durante os governos dos generais Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo. “É uma empreiteira brasileira que cresceu na ditadura. O grande salto da Odebrecht foi início da década de 1970, durante o governo Geisel”, explica o historiador Pedro Campos, autor do livro Estranhas catedrais – As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar. Ele mostra que a construção das usinas nucleares de Angra valeu à Odebrecht a confiança dos generais. “São obras do escopo da segurança nacional, contratos que os militares não deixariam para qualquer um. Era a empresa em que os militares confiavam para fazer isso.”
Em 1975, o governo Geisel havia sido o primeiro a reconhecer a independência de Angola. Ao mesmo tempo, a Odebrecht começava a se internacionalizar, a partir de um contrato no Peru. Mas Capanda foi um salto e tanto: para viabilizá-la, a Odebrecht literalmente convenceu o governo ditatorial a financiar a operação.
“A superação da questão do financiamento da obra foi alcançada quando Marc Altit, que atuava como diretor de desenvolvimento de negócios na área internacional da Odebrecht, estruturou um contrato inovador, com muitas variáveis e um mecanismo de garantia: o petróleo produzido em Angola. A ideia foi apresentada ao governo brasileiro, que, embora resistisse à novidade, via com bons olhos a perspectiva de contar com uma fonte fiável de petróleo numa fase em que os preços internacionais estavam elevados e havia grande disputa pelo produto”, relata Luiz Almeida, que na época era vice-presidente de Desenvolvimento Internacional da Odebrecht, em uma publicação institucional.
O atual membro do Conselho de Administração prossegue: “Em abril de 1983, o ministro Delfim – o mais importante membro da comitiva do presidente do Brasil, João Batista Figueiredo, em visita oficial ao México – fez a gentileza de me receber no hotel em que estava hospedado, em Cancún, e afirmou que, ao regressar ao Brasil, formalizaria a autorização para a operação de crédito para Capanda, a ser compensado com barter de petróleo angolano para a Petrobras.” Segundo a tese de doutorado de Joveta José, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a linha de crédito brasileira para a construção de Capanda acabou absorvendo recursos superiores a US$ 1,5 bilhão. Outros contratos semelhantes haviam sido estruturados pela ditadura no Iraque. O país enviava petróleo e recebia em troca obras de infraestrutura.
Do lado de lá, a Odebrecht convenceu o governo angolano de que seria mais proveitoso construir uma nova hidrelétrica do que ampliar a de Cambambe, já em funcionamento. “Trabalhamos para mostrar ao governo angolano que o investimento prioritário deveria ser em Capanda. Quando a decisão foi tomada, fui convidado ao gabinete do ministro do Plano, Lopo do Nascimento, que me deu pessoalmente a notícia de que Capanda tinha sido colocada como prioridade, porque fora convencido por nossos argumentos”, descreve Luiz Almeida. Outro argumento irrecusável era a oferta do governo russo de financiar os serviços e o equipamento enviado pela empresa estatal Technoexport, que já era sócia da Odebrecht no Peru. Faltava ainda algo essencial: construir o próprio cliente. Luiz relata ter convencido o ministro de Energia e Petróleos a estabelecer uma autarquia estatal para ser responsável pela obra. E facilitou um convênio com a estatal Furnas para auxiliar tecnicamente na implementação da nova entidade, o Gamek – Gabinete de Aproveitamento do Médio Kwanza.
Angola estava, àquela altura, em meio a uma guerra civil em que diferentes guerrilhas disputavam o controle do território. A Unita, apoiada pelas forças do governo do apartheid, na África do Sul, e pelos Estados Unidos, controlava parte do leste do país, enquanto o governo marxista do MPLA tinha controle sobre a capital, Luanda, com apoio cubano. Uma empreitada no interior do país só seria possível com amplo apoio do lado que seria o vencedor militar da guerra. “Autorizado por Emílio Odebrecht, liguei para o coronel António dos Santos França N’Dalu, então chefe do Estado-Maior das Fapla [Forças Armadas Populares de Libertação de Angola], amigo com quem eu compartilhava conversas e histórias”, prossegue o relato de Luiz Almeida. N’Dalu se tornaria o “general dos generais”, servindo duas vezes como vice-ministro da Defesa.
“Após um breve silêncio, o coronel N’Dalu afirmou que implementaria as medidas necessárias para a segurança da construção da usina. E assim, finalmente, chegamos a Capanda”, descreve Luiz Almeida. N’Dalu estabeleceu um gabinete militar comandado pelo capitão Jorge Silva “Sapo”, membro do Estado-Maior da Frente Centro da Fapla. Com a nova posição estratégica, “Sapo” foi promovido a major (tem fotos dele).
Capanda era alvo estratégico na guerra e chegou a ser interrompida duas vezes. Em novembro de 1992, foi ocupada por tropas da Unita. Oito funcionários foram sequestrados, e as negociações para a soltura foram encabeçadas pelo próprio Emílio Odebrecht, com apoio da Cruz Vermelha e de dois aviões Hércules C-130 das Forças Armadas Brasileiras.
Em 1997, as equipes da Odebrecht voltaram à área para recuperar o estaleiro. Em 1999 a obra foi novamente interrompida por causa de bombardeios. Retomadas em 2000, culminaram com o enchimento do reservatório em 2002, no fim da guerra civil. No meio tempo, Jorge Silva “Sapo” tornou-se ainda mais que um aliado da Odebrecht – em, 1992 o angolano ingressou nos quadros da Odebrecht e foi enviado para Cuba, para trabalhar num posto de confiança junto ao Superintendente da empresa no país.