"O Cabo do Medo": De al-Shabab a Daesh, uma incursão em Moçambique

Nuno Rogeiro e a capa do livro "O Cabo do Medo - O Daesh em Moçambique"

O “mistério” entre o grupo al-Shabab, criado por jovens moçambicanos na província de Cabo Delgado, e o Daesh, ou Estado Islâmico da Província da África Central, é o desafio que o jornalista, comentador e investigador português Nuno Rogeiro colocou a si mesmo durante dois anos e que agora dá forma ao livro “O Cabo do Medo - Daesh em Moçambique”, a ser lançado a 3 de junho.

Sem desvendar o “mistério” por agora, Rogeiro garante que a obra mostra a ligação entre os dois grupos, a transição, líderes e apoios internacionais e "sonho" do Daesh.

Em entrevista à VOA, ele é peremptório ao afirmar que o Daesh, ou Estado Islâmico, existe e que está presente em Moçambique, cujo Governo só recentemente decidiu dar nome ao grupo que provocou centenas de mortes e a quem apelidava de “homens sem rosto”, ao empreender uma ofensiva militar em curso.

Aquele investigador defende ainda uma conferência regional para combater a incursão do grupo na região, particularmente em Moçambique, como forma de evitar qualquer fracasso individual.

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Agenda Africana: "O Cabo do Medo": De al-Shabab a Daesh, uma incursão em Moçambique - 15:00


VOA – O livro está praticamente a sair, é possível ter certezas sobre os autores ou as motivações dos ataques que há dois e meio semearam o terror em Cabo Delgado?

Nuno Rogeiro - O livro tenta investigar e demorei dois anos a perceber isso, qual é a ligação entre o antigo grupo al-Shabab, um grupo de jovens que se formou em 2016 em Cabo Delgado e o atual dito Estado Islâmico da Província da África Central, de Moçambique, criado, segundo as minhas investigações em maio de 2019. O que procurei foi descobrir essa ligação. Como se fez esta transição, quem foram as pessoas que influenciaram essa transição, houve algum papel do Daesh central, que nessa altura estava instalado no Iraque, houve outros países com influência? Não posso revelar os países, mas posso dizer nessa insurreição, apesar de haver uma forte componente local de pessoas, que por várias razões estão descontentes com a sua vida, há uma influência do Daesh, que conseguimos demonstrar e que coincide com o relatório dos peritos das Nações Unidos sobre o Daesh e a Al-Qaida. O mistério central vai ser esclarecido no livro.

Nuno Rogeiro

VOA - Entretanto, o Governo moçambicano, parece, só agora decide combater diretamente o grupo, tendo anunciado nas últimas semanas baixas alegadamente importantes. Por que só agora?

NR - O Estado moçambicano por várias, que explico no livro em dezenas de páginas, não combateu efetivamente este grupo desde que foi criado em maio de 2019. Até há pouco tempo, como sabe, conseguiu várias vitórias, umas táticas, umas simbólicas e outras de propaganda, ocupou vilas, destruiu aldeias, destrui bens materiais e infraestruturas, massacrou e decapitou civis, conseguiu sitiar grupos das forças armadas e da polícia e conseguiu capturar armas, matou muitos homens das Forças de Defesa e Segurança, e a ideia de que havia era que as forças estão mal preparadas, mal equipadas e mal comandadas, e em fuga, totalmente ineficazes.

A partir da tentativa do Daesh de ocupar uma zona chamada Metuge, que é nas imediações de Pemba, o Estado moçambicano começou a reagir de uma maneira diferente. Declarou que o inimigo não era verdadeiramente o tal grupo de homens sem rostos, mas era o verdadeiro Daesh. Para isso conseguiu reunir alguns meios suplementares, - não são muitos, um grupo de helicópteros de profissionais sul-africanos e do Zimbabwe, - mas que fizeram alguma alteração no terreno. E o que alterou qualitativamente tudo, foi a introdução de drones que permitiram vigiar o território, o que não existia até agora. E com mudanças no comando, foi possível ao Estado moçambicano passar a combater o grupo com mais eficácia.

Os interesses reais

VOA - Este avanço em Moçambique tem a ver com a expansão do Estado Islâmico ou com interesses económicos, por exemplo de países que possam ser concorrentes no setor das indústrias extrativas… Há dias, num comentário, falou em conspiração, quem está por trás dessa possível conspiração?

NR – O grupo Daesh existe mesmo, não é um fastasma, não é invenção, não está apenas na internet, existe mesmo; tem bases na República Democrática Congo, que estão a ser destruídas desde outubro de 2019 com a ajuda das Nações Unidas; tem bases no sul da Somália e na Puntlândia, embora mais pequenas; tem algumas bases na Tanzânia, mas não permanentes, porque o Governo da Tanzânia não os tem deixado assentar no território, mas transitam para Moçambique; e depois tem a componente moçambicana.

Como sabe, a população de Cabo Delgado tem uma grande percentagem de muçulmanos, pacíficos e que aderem à ordem constitucional, mas há pessoas que estão descontentes com a sua situação há bastante tempo. Pegando nesse descontentamento, o Daesh trouxe essa ideia que já era do al-Shabab “temos de ocupar este território para a lei islâmica e temos de ganhar alguma coisa com os recuros naturais”.

O que todas as pessoas dizem é que o plano é apanhar Cabo Delgado e depois negociar o gás natural com vários países. Imagine que o Estado Islâmico que estava no Iraque, com petróleo, moeda, território, conseguisse passar essa experiência para Cabo Delgado, e passasse a ter o controlo dos recursos naturais. Seria um sonho, não só dos recursos naturais, mas passaria a ter uma praia de desembarque de todo o tipo de tráficos. Embora saibamos que o Daesh é contra a droga, contra todo o tipo de imoralidade, sabemos que tem cobrado taxas a traficantes. Se Cabo Delgado de transformasse numa plataforma de tráfico, o Daesh poderia extrarir grandes percentagens só com o pagamento de taxas de proteção.

Quanto às indústrias extrativas, é verdade que não houve ataques diretos a Palma, mas houve intimidação de colaboradores, ataques a colunas logísticas que iam para Palma. Nunca fez ataques diretos às instalações porque o Daesh nunca teve força suficiente para atacar lugares fortemente protegidos. De norte a sul de Cabo Delgado, aquela zona é a mais militarizada. Para conquistarem essa zona teriam de perder muita gente.

Repare que também tentaram ocupar Pemba e não conseguiram. Eles procuram lugares onde têm uma maioria muçulmana, que pode ser simpática, como Mocímboa da Praia ou Quissanga, mas a partir daí não tem conseguido avanços. Não vejo nenhuma ligação entre a atividade extrativa e o Daesh.

É verdade que há muitas pessoas em Cabo Delgado que estão revoltadas com a repartição das riquezas, em função do gás natural, mas este é um problema social que não tem que ver com o Daesh. Não podemos considerar que todo o descontentamento social tem a ver com o Daesh, há muitas pessoas que estão descontentes, que nada têm a ver com o terrorismo e que se expressam pelas vias normais, manifestações, por radicalismos, mas não através de atos terroristas.

VOA – Então, não há um risco desses ataques se estenderem a meios urbanos?

NR – O risco existe por uma razão: Se a atual ofensiva das Forças de Defesa e Segurança falhar… Imagine, a atual ofensiva já se saldou na conquista de um campo, que fica entre Mucojo e Quiterajo, que eles chamavam “Campo Síria”, mas a maioria dos comandantes, uns de origem tanzaniana, outras de origem ugandesa, de outras nacionalidades que fugiram do Congo e alguns moçambicanos, fugiram também, mas enquanto não forem apanhados vão continuar a dirigir unidades que podem ser muito ativas. Se a ofensiva falhar, podem regressar e ameaçar centros urbanos, embora em Cabo Delgado, para além de Pemba, não há grandes cidades… Podem continuar, no entanto, a ocupar vilas. Eles não conseguiram passar o cordão de Pemba, entre Metuge e Mieze

Um eventual falhanço dessa ofensiva seria um golpe moral, por isso Moçambique está a tentar conseguir um consenso internacional que possa apoiar politicamente o seu esforço.

Frente única e conferência regional

VOA – Disse que os membros do Daesh não têm apoio dos governos da região, apesar de se movimentarem naqueles países, os presidentes de Moçambique e de Zimbabwe reuniram-se recentemente, haverá alguma tentativa de frente única para evitar o avanço do grupo?

NR – Não há frente infelizmente, mas posso lhe dizer que o livro termina com um apelo para que haja uma conferência regional executiva que possa dar imediatamente instruções diretamente para o terreno. Na conferência, para mim, deveriam participar Zimbabwe, Moçambique, Tanzânia, Malawi, República Democrática do Congo, Zâmbia e o Uganda. São países por onde passam elementos do grupo ou de onde são originários os comandantes e que, de certa forma, têm interesse em criar uma força de segurança, que, entretanto, não foi criada.

Houve conversas, como sabe, entre Zimbabwe e Moçambique, no Chimoio, mas não é verdade que haja tropas do Zimbabwe em Moçambique em grande número, há alguma cooperação militar; o exército do Zimbabwe tem especialidades que Moçambique não tem, bem como alguns helicópteros e aviões fornecidos pela China… há conselheiros e pessoas a treinar, mas não existe uma presença militar do Zimbabwe como houve durante a guerra civil, que, alias, deixou más recordações, sobretudo, com a Quinta Divisão, treinada pela Coreia do Norte.

VOA – Em certos setores fala-se da presença de mercenários angolanos no terreno. Tem informação sobre isto?

NR – Isto tem a ver com uma foto que circulou de militares que estavam a partir do Aeroporto de Pemba e que foram identificados como sendo angolanos. Não é verdade. Tanto Angola, como o Brasil e Portugal, no âmbito da CPLP, têm dado apoio à formação de forças especiais moçambicanas, nomeadamente no programa da CPLP Felino, mas aqueles homens que estavam no Aeroporto de Pemba eram fuzileiros moçambicanos, do pelotão de abordagem.

Posso dizer-lhe uma coisa, não vejo grande interesse político do Estado moçambicano em ter forças angolanas. Para mim é uma pena porque acho que Angola, Portugal e Brasil são os países que, vejo, disponíveis para ajudar.

O autor

Jornalista, investigador, comentador televisivo e autor de vários livros , Nuno Rogeiro foi também professor universitário.

Desde cedo, destacou-se pela análise e política, em particular sobre as relações internacionais, e nos últimos anos têm-se dedicado ao fenómeno do terrorismo.

“O Inimigo Público - Carl Schmitt, Bin Laden e o Terrorismo Pós-Moderno”, lançado em maio de 2003, é uma das suas obras mais conhecidas, juntamente com “O Pacto Donald. Trump: Novo Contrato com a América ou Fraude?” (2017), “O Mistério das Bandeiras Negras. Ascensão e Queda do Dito Estado Dito Islâmico” (2015), “Obama em Guantánamo: A Nova segurança Americana” e “Para Além de Bin Laden (em co-autoria c/ J. Meacham et al), em 2011, entre outros.

O livro tem a chancela das Edições D. Quixote.