Angola: Especialistas criticam fim da gratuidade do sistema de saúde

  • Agostinho Gayeta

Hospital Provincial Materno Infantil de Malanje, Angola

Os dados apresentados pelo Chefe do Governo angolano, João Lourenço, no seu discurso sobre o Estado da Nação indicam um suposto avanço significativo no sector da saúde em Angola, com a expansão e aumento da rede hospitalar em todo o país, resultando em melhorias na qualidade dos serviços prestados à população.

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Gratuidade do sistema de saúde em Angola

Contudo, o recente anúncio sobre a possível eliminação da gratuidade dos serviços de saúde no país provocou intensos debates na sociedade civil angolana. Analistas questionam a eficácia dessa medida num país onde a maioria da população possui rendimentos precários, e muitos bairros estão em condições propícias ao surgimento de doenças.

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Para o presidente do Sindicato dos Médicos Angolanos, o país possui um dos piores sistemas de saúde da África, com o governo a priorizar a construção de hospitais de terceiro nível em vez de melhorar o sistema de saúde primário. O médico Adriano Manuel critica a falta de um sistema de saúde primário funcional e de um sistema de referência e contra referência eficaz. Ele também aponta problemas na formação de recursos humanos e os baixos salários do sector.

Angola tem um dos piores sistemas de saúde da África".

"Se considerarmos os determinantes de saúde, infelizmente temos um governo que inverteu a pirâmide e está mais preocupado em construir hospitais de terceiro nível, quando o elevado índice de mortalidade no nosso país está relacionado com a deficiência do sistema de saúde primário”, afirmou o médico pediatra, que considera que Angola não possui um sistema de saúde funcional.

“Não temos um sistema de saúde primário funcional, não temos um sistema de referência e contra-referência eficaz, e temos um elevado índice de mortalidade nos nossos hospitais. Portanto, a avaliação que faço do sistema de saúde em Angola é extremamente precária”, declarou.

Sobre o fim da gratuidade do sistema de saúde, Adriano Manuel denuncia que a saúde em Angola nunca foi verdadeiramente gratuita, considerando que muitas famílias são obrigadas a comprar os seus medicamentos fora das unidades hospitalares estatais, que frequentemente não têm condições de prestar assistência medicamentosa aos pacientes.

“Falar de gratuidade na saúde é relativo, pois existem situações em que são os próprios familiares que compram os medicamentos. Muitos hospitais não têm quase nada. Na verdade, não é tão gratuito assim, pois muitas pessoas precisam comprar os seus medicamentos. Assim, não podemos falar da gratuidade de forma geral”, começou a afirmar.

“Se tivermos em conta a condição actual, temos um elevado índice de desnutrição devido à falta de recursos financeiros, além de um alto índice de pessoas com tuberculose e HIV, o que está intrinsecamente relacionado ao aumento da pobreza. Portanto, fica difícil falar sobre isso, e se a gratuidade acabar, com certeza será um caos”.

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Angola: Comparticipação nos cuidados de saúde divide opiniões

A médica e professora assistente de pesquisa, Kama Sandra, afirma que o sector da saúde tem demonstrado avanços significativos nas últimas décadas, mas ainda enfrenta desafios consideráveis. Reconhece o aumento de investimentos, mas que na sua visão ainda é tímido do ponto de vista da atenção e assistência a nível primário.

“Existem notáveis investimentos na implementação de estruturas de atenção terciária, e reconheço que o sector da saúde, há 10 anos, não é o mesmo que é agora. Contudo, o financiamento desse sector continua a ser um grande desafio”, explicou.
Outro desafio para o sector da saúde, além da falta de assistência ao sector primário, é o acesso limitado aos serviços de saúde, especialmente para as populações que precisam percorrer longas distâncias para obtê-los.

“Quando nos referimos ao acesso à saúde, isso se traduz na possibilidade de o indivíduo obter assistência quando e onde for necessário, sem obstáculos, e que essa assistência seja, de fato, de qualidade. Ainda verificamos que, com frequência, os indivíduos se deslocam de lugares muito distantes apenas para conseguir essa atenção”, observou.

Kama Sandra também apontou o rácio de profissionais de saúde-paciente como um desafio para o sector, afirmando que “está muito aquém do aceitável”. Acrescenta que“a qualidade dos serviços de saúde ainda é bastante variável. É importante fortalecer a atenção primária, pois ela é a porta de entrada para o sistema de saúde e deve ser capaz de resolver cerca de 30% dos problemas de saúde da população”, referiu.
O financiamento do sector da saúde é outro grande desafio

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A melhoria do funcionamento da atenção primária de saúde é crucial, pois é responsável por gerenciar e resolver até 80% dos casos, ajudando a desafogar os níveis de maior complexidade.

Outros desafios significativos, segundo a especialista, incluem o financiamento do sector da saúde, a formação contínua dos recursos humanos, as infraestruturas das instituições de saúde e os equipamentos necessários. O perfil epidemiológico também é considerado um grande problema.

Recentemente, o governo angolano, por meio do Ministro do Planeamento, Victor Hugo Guilherme, anunciou a possibilidade de a partir de 2025, o governo acabar com a gratuidade da saúde e permitir que entidades privadas façam a gestão de alguns serviços, mas com proteção aos mais vulneráveis.

A Lei de Bases do Sistema de Saúde, Lei nº 21/92 de 28 de agosto, prevê uma atenção à saúde tendencialmente gratuita, prevendo o surgimento de outras medidas, como as comparticipações.
A gratuidade do sistema de saúde representa uma abertura para o acesso universal aos serviços de saúde e, teoricamente, garante um maior acesso da população. No entanto, essa não é a única variável determinante para assegurar o acesso, segundo a médica Kama Sandra para quem “poderíamos esperar que a gratuidade permitisse ou garantisse uma maior adesão a programas de vacinação, por exemplo, ou a outros programas preventivos, além de um maior acompanhamento das doenças crónicas. Contudo, muitas outras variáveis constituem obstáculos para alcançar esses objectivos”.

A médica, que analisou para a Voz da América as implicações dessa mudança, considerando o perfil epidemiológico de Angola e a capacidade financeira da maioria da população, destacou que muitas doenças prevalecentes em Angola estão ligadas as condições sanitárias precárias, que são do responsabilidade do Estado melhorá-las. Para ela, transferir a responsabilidade do acesso à saúde para o cidadão pode ser injusto e piorar as desigualdades sociais existentes.

A especialista sugere que, em vez de acabar com a gratuidade, o governo deveria priorizar investimentos em saneamento básico, água potável e educação para a saúde, fortalecendo a atenção primária antes de considerar as mudanças no sistema de saúde gratuito.

“Essa proposta de fim da gratuidade na saúde em Angola, considerando também o perfil epidemiológico do país e a capacidade financeira da maioria da população, levantará importantes questões sobre o compromisso do Estado em garantir o direito à saúde, a justiça social e a efectividade das políticas públicas”, disse.
“O perfil epidemiológico angolano é marcado pela alta prevalência de doenças transmissíveis, que estão intrinsecamente ligadas a condições sanitárias precárias”, afirmou.

“Existem doenças como a malária, diarreias e doenças respiratórias agudas que estão diretamente relacionadas à qualidade do saneamento básico. No caso, podemos afirmar que há uma ausência de saneamento básico. Também estão ligadas ao acesso a condições habitacionais adequadas, que muitas vezes são inadequadas para a maioria da população. Portanto, a eliminação ou minimização desses fatores de risco é primordialmente uma responsabilidade do Estado, que deve garantir um saneamento básico adequado, uma rede de esgoto tratada e uma recolha adequada do lixo”.

O líder do sindicato dos médicos angolanos questiona a lógica da terceirização de alguns serviços de saúde, sugerindo como alternativa a implementação de um seguro obrigatório de saúde e a utilização de uma percentagem dos rendimentos de empresas públicas como fontes alternativas de financiamento para o sector.

Destacou que 80% da população jovem em Angola está desempregada, enfatizando a necessidade de buscar novas fontes de rendimento para melhorar a qualidade da assistência médica e medicamentosa no país.

“Uma das grandes fontes de financiamento é, sem dúvida, o seguro obrigatório de saúde. Além disso, as empresas públicas, que têm fontes de rendimento, podem desempenhar um papel importante no aumento do orçamento do Estado.

Por exemplo, a ENDE pode destinar 1 ou 2% de seus rendimentos para a saúde. O mesmo se aplica às empresas de água. De modo geral, empresas públicas como a Endiama e a Sonangol podem destinar 1 ou 2% de seu orçamento para a saúde. Dessa forma, podemos melhorar a qualidade da saúde no nosso país, especialmente considerando que 80% da população jovem em Angola está desempregada”, enfatizou.

A solução para garantir uma melhor prestação de serviços de saúde passa, obrigatoriamente, pela prevenção. “Se conseguirmos prevenir, muito do dinheiro que está sendo gasto na construção desses hospitais poderá ser utilizado para a construção de escolas e outros postos médicos”.

Em relação ao discurso sobre a nação, que indicava “ganhos significativos” no sector da saúde, o presidente do Sindicato dos Médicos Angolanos afirmou que as informações de João Lourenço estão enviesadas.

“Sinceramente, os dados que o Presidente da República possui são certamente distorcidos, pois não houve melhoria na assistência médica. Para se ter uma ideia, os profissionais que vão trabalhar nesses hospitais são retirados de outros lugares, reduzindo a força de trabalho e, dessa forma, comprometendo a qualidade geral dos serviços. Não houve melhoria nos índices de mortalidade, nem no que diz respeito à deficiência médica”, declarou.

A médica e assistente de pesquisa, Kama Sandra, também apresentou ideias sobre como o sector privado pode complementar os serviços de saúde públicos após o fim da gratuidade, citando exemplos de países como Ruanda, Gana e Vietname, onde programas de seguros de saúde têm mostrado resultados satisfatórios. Enfatizou a importância de pesquisas para melhorar a qualidade dos processos e para compreender melhor a realidade do sector de saúde.

“Se houver o fim da gratuidade, o sector privado poderá complementar, por meio de parcerias público-privadas, os serviços públicos, assumindo a gestão de unidades de saúde, fornecendo equipamentos e insumos, mantendo as infraestruturas e oferecendo programas de seguro de saúde.

O sector privado pode investir em tecnologias para as instituições de saúde e participar na melhoria da eficiência operacional dessas instituições, além de desenvolver tarefas de supervisão”, concluiu.

O governo analisou, na semana passada, a proposta de Orçamento do Estado para o ano econômico de 2025, que prevê receitas e despesas de 33 bilhões de kwanzas (33,5 mil milhões de euros). O valor total para despesas do setor social aumentou de 4,9 bilhões de kwanzas, em 2024, para 7,4 bilhões, em 2025, de acordo com a proposta do Orçamento Geral de Estado (OGE) para o exercício econômico do próximo ano.

A ministra das Finanças, Vera Daves de Sousa, sublinhou recentemente, em conferência de imprensa sobre a proposta do OGE 2025, que o valor representa um aumento orçamental de 44% para o sector. Um dos principais programas do setor social, como a Expansão e Melhoria do Sistema Nacional de Saúde, recebeu uma proposta orçamental de 807 milhões de kwanzas.

Adriano Manuel expressou forte desconfiança em relação aos deputados da Assembleia Nacional, particularmente os da bancada do MPLA, acusando-os de estarem comprometidos com um projecto do partido no poder, em vez de cumprirem as suas responsabilidades para com o país. Ele denunciou que os deputados estão apenas interessados em atingir os seus próprios objectivos.

“Todas as recomendações feitas em orçamentos anteriores não foram cumpridas. A Assembleia Nacional não tem exercido seu verdadeiro papel em relação à saúde no país, pois sempre recomendamos a necessidade de melhorar a saúde primária, mas isso não acontece.

Os deputados da Assembleia Nacional pertencem ao partido no poder e estão cumprindo um projeto partidário. Por isso, não se pode confiar nos deputados dessa bancada, que, na minha perspectiva, são verdadeiros mercenários, apenas interessados em atingir seus objetivos e nada mais”.