O uso da força e a falta de transparência do Governo moçambicano dificultam a compreensão da sua abordagem sobre os ataques que, desde 2017, mataram centenas de pessoas na província de Cabo Delgado.
A afirmação é de investigadores internacionais reunidos nesta semana no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington, para entender melhor a insurgência, cujos mentores e motivações não reúnem consenso.
Nas notas da conferência, o Centro afirma que naquela província rica em recursos naturais foram realizados, nos últimos dois anos, 110 ataques com mais de 295 civis e militares mortos, “mas apesar da escalada da violência, há lacunas significativas na nossa compreensão do problema”.
Os factores que alimentam a insurgência, dizem estudos, incluem a má governação, usurpação de terras de camponeses para a exploração de recursos naturais, distribuição desigual da riqueza e falta de serviços básicos na região.
Divergências entre muçulmanos locais foram também apontadas como potencial factor dos ataques, havendo uma corrente que diz serem da autoria do grupo Al Shabab ou Ahlu Sunna wa Jama, mas, diz a nota, “os especialistas encontram dificuldades para apurar quem faz parte desses grupos e responder à questões essenciais sobre os seus objectivos, recrutamento ou fontes de financiamento”.
No geral, lê-se na nota que “não há consenso sobre os principais vectores do extremismo naquela região, incluindo as ligações entre redes extremistas locais, regionais e internacionais”.
Resposta violenta
No início da insurgência, o Governo moçambicano menosprezou os “criminosos” para, de seguida, colocar unidades especiais das forças de defesa e segurança, que não travaram a ocorrência de mais ataques.
Nessa sua resposta, diz o director do programa de África daquele centro, Judd Devermont, o Governo “tem sido excessivamente repreensivo e contraproducente”.
Devermont afirma que a forma como o Executivo faz “detenções, execuções extrajudiciais, a pouca transparência, irá exacerbar o problema, e não resolver”.
Exemplo disso, acrescentou Zenaida Machado, pesquisadora moçambicana da Human Rights Watch, militares “contaram que receberam ordens informais para eliminar os inimigos (insurgentes), porque detê-los não faz sentido e custa muito dinheiro ao Estado (…) o melhor é elimina-los no terreno”.
A Human Rights Watch denunciou, entre outras violações, a intimidação de jornalistas que cobrem as zonas atacadas, mas as autoridades nada fizeram para impedir a continuidade disso.
Diálogo
Perante este cenário, os Estados Unidos e outros parceiros iniciaram o apoio a Moçambique para garantir a segurança e promover o diálogo.
“O objetivo é abordar questões de governação e desenvolvimento e oferecer formação acrescida para fortalecer a capacidade das forças de segurança moçambicanas”, afirma Stefanie Amadeo, directora de África Austral no Departamento de Estado americano.
O antigo embaixador dos Estados Unidos em Moçambique, Dean Pittman, por seu lado, afirma que um dos aspectos críticos do Governo de Maputo é a “tendência de secretismo, de não partilha e não ser transparente em relação às suas estratégias, o que apenas cria maior desconfiança no seio da população local”.
Pittman acrescenta que a partilha de informação com os líderes locais ajuda a estabelecer o apoio comunitário, assim como o uso de líderes muçulmanos na condenação da violência.
Compensações irrisórias
O historiador moçambicano Yussuf Adam defende, por seu lado, uma compensação justa aos que cedem as suas terras para projectos de exploração de recursos para evitar a percepção de que “a lei de nacionalização da terra só funciona para os pobres".
"A terra é do Estado quando o dono é pobre, quando é um rico, não", sublnha Adam
Ele explicou que em Moçambique, “na prática são os pequenos cuja terra é quase expropriada com pagamento irrisório e as pessoas sabem disso. Há uma série de problemas que foram criados e têm que ser resolvidos”.
Para aquele investigador moçambicano, a solução está no diálogo.
“Nem é preciso ir andar à procura dos chamados insurgentes, Al-Shabab, é ir às aldeias, aos conselhos executivos das aldeias porque eles próprios sabem quem são as pessoas, mas sem o uso da força. Não fazendo isso, estaremos continuamente a andar com estes conflitos”, sustenta.
Alex Vines, chefe do programa de África na Chantam House, em Londres, considera que “Moçambique é o Estado mais fraco na África Austral…uma entidade muito frágil”, e acrescenta que o potencial de receitas do gás em Cabo Delgado aumenta a insatisfação da população, com o Governo sem oferecer serviços básicos.
Elite desconectada
Para Vines, o facto de o Presidente e seus colaboradores próximos serem naturais de Cabo Delgado, mas incapazes de responder às necessidades dos mais pobres, “mostra quão desconectada é a elite política moçambicana ao que acontece ao nível de base”.
Com vontade política, diz Vines, pode-se inverter o cenário, e as eleições em Outubro podem levar a isso.
Mas tendo em conta a redução do apoio à Frelimo, no poder, em Cabo Delgado, aquele investigador tem reservas quanto à qualidade dos resultados dessa votação e alerta“a comunidade internacional para estar vigilante”.
A conferência organizada pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington acontece dias após o grupo radical Estado Islâmico ter reivindicado uma acção em Cabo Delgado, o que os investigadores, de forma unânime, advertiram para não ser tomado como facto defintivo, antes de uma investigação mais profunda.
Áudio disponível em www.voaportugues.com
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