"Força local", integrada por antigos combatentes, entra em ação em Moçambique com muitas ressalvas

Tropas presentes na vila de Mocímboa da Praia, Cabo Delgado, Moçambique

O Governo moçambicano formalizou através de um decreto a atuação dos grupos de “milicianos” designados por Força Local como reforço dos mecanismos institucionais no combate ao terrorismo em Cabo Delgado, maso seu estatuto e atuação continuam a dividir opinião e analistas políticos.

O decreto publicado a 14 de Abril de 2023, nove dias após a sua aprovação pelo Conselho de Ministros e em circulação desde a semana passada, oficializa a entrega de armas a civis e fixa um subsídio mensal, uma pensão de invalidez e assistência funerária aos membros da força local, integrado por antigos veteranos da luta de libertação nacional.

O documento foi aprovado quase um ano depois de o ministro da Defesa ter manifestado o interesse pela formalização dos milicianos.

A força local foi mobilizada e armada pelo Estado em 2020, perante a pressão de frear a insurgência face à ineficácia das Forças de Defesa e Segurança e, a falta de sua regulamentação, propiciou alguns abusos contra civis indefesos, segundo relataram à Voz da América vários moradores locais.

“A força local defendeu várias aldeias para não serem invadidas por terroristas, e tem aldeias que escaparam mesmo por isso”, afirmou Sulemane Sadique, um deslocado de guerra que regressou à aldeia de Rafique, no interior do distrito de Macomia.

Apesar da Força Local ter repelido vários ataques, outro morador, contou à Voz da América que vários abusos foram cometidos pela força, incluindo torturas e assassinatos de civis suspeitos de integrar ou de serem informantes de grupos terroristas, numa altura em que vários corpos decapitados voltaram a ser encontrados nas matas.

Na sexta-feira, 21, foram descobertos três corpos decapitados e em decomposição perto de campos agrícolas na aldeia Litamanda, no distrito de Macomia.

Na segunda-feira, 17, outros dois corpos foram encontrados decapitados na aldeia Chai, no mesmo distrito, não se conhecendo a identidade e o autor das execuções, que reacenderam o clima de medo entre os deslocados regressados.

“Pessoas eram maltratadas por desconfianças de serem terroristas, matavam-se entre civis e várias violações foram relatadas nas aldeias”, protagonizadas por membros da Força Local, acrescentou a fonte na condição de anonimato.

Brechas

O decreto que formaliza a Força Local estabelece que a sua ativação, pelo Ministro da Defesa Nacional, sob proposta do Estado-Maior General das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), é condicionada à existência de ameaça à soberania e à integridade territorial.

No caso, os elementos da Força Local devem denunciar a presença de elementos estranhos na comunidade e detectar e neutralizar as tentativas de infiltração inimiga no seio das milícias, situação que segundo analistas moçambicanos pode propiciar os abusos, por a lei não definir com clareza o “elemento estranho e infiltrado” na comunidade.

Para o jornalista moçambicano Fernando Lima, que não esperava que fosse estimulado o reaparecimento das milícias nos teatros operacionais, realça que os abusos são inevitáveis quando armas estão nas mãos de civis.

“Não é uma força regular, é uma força irregular, sem qualquer formação neste domínio, e tem a tendência de aplicar os princípios de retalião, ou seja, olho por olho, dente por dente, e depois há os abusos que são reportados com regularidade”, anota aquele analista político com longa experiência na cobertura de conflitos armados em Moçambique.

Já o analista político Wilker Dias, que estuda o conflito em Cabo Delgado, diz que o comando no teatro operacional não vai permitir abusos por falta de clareza sobre como definir um estranho e infiltrado na comunidade.

“Numa primeira fase é preciso identificar bem os elementos destes grupos para a atribuição das armas, e o comando deve ser eficaz, não cabendo aos membros da força local a decisão de alguma operação sem a autorização das FDS”, vinca Dias, insistindo que a fiscalização das milícias é crucial para a salvaguarda dos direitos humanos.

Ele realça que, ao evitar infiltrados, os milicianos podem impedir que grupos rebeldes tenham acesso a informação privilegiada das forças governamentais no teatro operacional norte, em Cabo Delgado.