O julgamento do caso das “dívidas ocultas” em Moçambique vai já no seu terceiro dia e para alguns observadores começa a ficar claro que quem está a ser julgado na cadeia da Machava é a anterior Presidência de Moçambique e todo um sistema de governação do país.
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O jornalista Fernando Lima diz que não pode haver dúvidas quanto a isso e realça que é, de facto, "o anterior mandato do Presidente Guebuza que está a ser julgado, o Conselho de Estado já deu, inclusivamente, autorização a que o antigo Chefe de Estado seja ouvido porque ele era o responsável que autorizou estes empréstimos".
Lima avança que "o facto de o Presidente Nyusi, que no passado foi ministro da Defesa no Governo do Presidente Guebuza, ter dado força a que a Procuradoria-Geral da República prosseguisse com o seu processo, é apenas um pequeno detalhe neste assunto das dívidas ocultas".
O jurista Tomás Vieira Mário escreveu na sua página no Facebook que este é, certamente, "um dos maiores processos de corrupção alguma vez tramitados em África, quer pela natureza e densidade das matérias que lhe dão corpo, quer pela qualidade dos arguidos, determinada pelas suas funções no sistema de governação do país: afinal estão inclusos os responsáveis máximos dos Serviços de Informação e Segurança do Estado".
Qualidade dos arguidos
Aquele jurista destaca que, pela sua natureza, pelas condições estruturais que o permitiram, "este não é apenas um processo que vai julgar os 19 arguidos formalmente nele arrolados porque, ainda que invisíveis, com estes encontram-se várias centenas, senão mesmo milhares, de outros moçambicanos, igualmente, na qualidade de arguidos, ainda que com diferenciados graus de envolvimento e culpabilidade".
Na opinião de Vieira Mário, "um negócio de endividamento de um Estado em mais de dois mil milhões de dólares americanos não é uma operação que possa ser engendrada, desencadeada e realizada num estalar de dedos, por uma dezena de funcionários públicos, por muito altos que sejam os seus cargos, incluindo o de Presidente da República".
Por seu lado, Tomás Rondinho diz que na cadeia de máxima segurança da Machava está a ser julgado o sistema de governação de Moçambique e questiona "por que as altas figuras do Estado, ao nível presidencial, não foram arroladas para este processo".
Para Tomás Vieira Mário, a contratação destas dívidas não foi um “escândalo” isolado na trajectória política de Moçambique independente, mas representa, tão-somente, um dos mais emblemáticos momentos da trajetória de um sistema de governação, seguido por Moçambique nos últimos 30 anos.
Instrumentalização do Estado
Aquele jurista sublinha que se " trata de um sistema de governação em que o acesso e o exercício do poder de Estado têm como motivação primária a instrumentalização do próprio Estado, como meio de acesso e apropriação privada dos recursos da colectividade.
Um sistema de governação onde, na sua opinião, a coberto de fidelidades partidárias, o clientelismo e o acesso a oportunidades de diferente ordem passam por práticas que se traduzem em captura do Estado pelas elites políticas.
Ele realça ainda que, "nos nossos dias, a saga da corrida das nossas elites políticas visando a apropriação indevida dos recursos públicos, vem assumindo, por vezes, o nível de pura pilhagem".
Tomás Vieira Mário sublinha que qualquer que venha a ser o desfecho do processo – com absolvidos e condenados - "tais decisões apenas terão algum significado para a Nação se assinalarem o inicio de um processo mais longo, mais envolvente, de um debate nacional profundo, em que, sem culpados nem inocentes, procuremos, todos, resposta à seguinte pergunta: Como é que nós, moçambicanos, chegamos ao ponto de dever ao mundo, mais de dois mil milhões de dólares, de dívidas contraídas sem o nosso conhecimento e em violação da Constituição da Republica?”
Desde o dia 23 estão a ser julgados 19 arguidos acusados de terem participado no escândalo que levou à prisão na África do Sul, a pedido dos Estados Unidos, do então ministro das Finanças, Manuel Chang, que deve ser extraditado em breve para Moçambique.