Por Israel Campos
Era ainda uma criança quando percebeu que gostava das palavras. Ao redor de Laércia Insali, quase todos tinham a certeza: “Gosta muito de falar, vai mesmo ser jornalista”, diziam. Mas foi preciso algum tempo antes da jornalista guineense perceber que a sua jornada profissional seria mais difícil do que só entreter as pessoas através daquilo que gostava.
“Mesmo sem entender nada na televisão [enquanto criança] eu sabia que eu queria aquilo. Eu via algumas jornalistas como a Paula Melo que me inspiravam bastante e eu só queria ser como elas”, diz-nos, ao descrever a sua infância no Bairro Reno, na capital Bissau.
A mãe, que foi e continua a ser a sua maior motivação, não lhe deixou pensar duas vezes. “O meu pai quis que eu estudasse enfermagem mas a minha mãe sempre disse que eu devia escolher o meu caminho. ‘Ela deve viver o que ela sempre sonhou’, a minha mãe sempre disse ao meu pai”, conta-nos a jornalista co-fundadora da plataforma de jornalismo independente CAPGB-Mídia.
Licenciada em Comunicação Organizacional e Jornalismo pela Universidade Lusófona da Guiné-Bissau, Laércia diz-se intrigada sobre os motivos que levam as redações jornalísticas da Guiné a continuarem a ser tão fortemente dominadas por homens.
“Pela minha experiência, nas universidades grande parte dos estudantes a frequentarem este curso são mulheres, mas depois nos órgãos a maioria são os homens. Eu não sei o que é que acontece depois!”, detalha a jornalista.
Um recente estudo sobre jornalismo na Guiné-Bissau revelou isto mesmo. “No universo de 41 [jornalistas] licenciadas/os 33 são mulheres e 8 são homens”.
O estudo, apresentado pela Associação das Mulheres Profissionais da Comunicação Social da Guiné-Bissau em 2022, desvendou ainda a condição profissional precária dos jornalistas daquele país onde “quase 90% dos profissionais dos órgãos privados aufere menos de 150 euros por mês, não têm contratos de trabalho e que 71% não faz descontos para a segurança social”.
Sobre paridade, o estudo diz que mais de 50% dos inquiridos considerou não haver respeito pela igualdade de género nos órgãos de comunicação social e que “de 22 jornalistas que declararam que já foram vítimas de assédio, 21 foram mulheres e 1 foi homem”.
Laércia diz-se familiar com os números que fazem parte do seu quotidiano profissional. Mas mais do que os números de mulheres nos órgãos, está preocupada com a forma com que as mulheres são representadas e tratadas.
“Mas porquê que as funções que são dadas às mulheres jornalistas são quase sempre as mesmas? Porquê que colocam as mulheres mais em áreas de apresentação de programas mas os homens podem ir para o terreno buscar e investigar histórias?”, questiona.
‘O jornalismo é de quem tem paixão por contar histórias’
As questões que Laércia coloca são transatlânticas, pois em Moçambique não é muito diferente.
“Aqui em Moçambique existem pessoas, sobretudo jornalistas homens, que nos têm subestimado, enquanto mulheres jornalistas. Eles dizem e pensam que não somos capazes de fazer aquilo que eles fazem”, descreve Nelsa Guilima, 29, repórter do canal digital Infor Tv de Moçambique.
Como Laércia, a jovem de 29 anos também sonha com a profissão desde muito nova: “Uma vez o meu professor deu-nos um texto para lermos [sobre rádio em Moçambique] e aquele texto me inspirou muito. Eu passava todo dia cantando e repetindo aquele texto. Eu tinha a capacidade de decorar todo aquele texto que lia com toda a paixão, foi aí que decidi o que queria fazer”, disse à VOA.
Mas não bastava o sonho, Nelsa quis ver para crer e foi aí que surgiram os primeiros desafios. “Ao crescer eu tinha dificuldade de encontrar referências de mulheres jornalistas para mim. Acho que as mulheres não eram consideradas. Cresci a ouvir que as mulheres não podem fazer jornalismo, porque essa profissão tem muitas correrias e que os homens eram mais fortes para isso”, diz.
Nelsa defende que de lá para cá as coisas têm melhorado consideravelmente, pois vai interagindo com cada vez mais mulheres na sua profissão. Ainda assim, os dados estatísticos não são tão animadores para muitos.
De acordo ao último Relatório Anual de Género na Mídia, da organização moçambicana não-governamental Associação h2n, em 2022, as mulheres representam somente 28% do total de jornalistas nas redações dos órgãos públicos e privados do país.
O estudo extensivo que analisou distintos órgãos da imprensa, entre jornais impressos, rádios e televisão, aponta uma evidente falta de representatividade feminina na comunicação social de Moçambique, indicando as rádios comunitárias como sendo as mais inclusivas no domínio de género.
Nelsa Guilima olha, ainda assim, com esperança para o futuro. Quer continuar a contar histórias que impactam as pessoas e a sociedade e tem uma certeza: “O jornalismo não é do homem nem da mulher. O jornalismo é de quem tem paixão por contar histórias”.
É esta paixão que levou a angolana Júlia Dial a começar uma nova carreira profissional depois dos 35 anos de idade.
A fotojornalista, que já trabalhou como retalhista, diz que ainda sente que o fotojornalismo é uma atividade “desafiante” para as mulheres, mas nem isso a impediu.
Com recursos próprios, comprou a primeira máquina de fotografar há três anos e começou a aprender o ofício por si mesma. Ainda se lembra da primeira vez que fotografou profissionalmente.
“Era um evento sobre propriedade intelectual. Os organizadores não me confiavam muito porque não tinha experiência profissional, mas depois surpreenderam-se com os resultados”, diz a fotojornalista freelancer angolana.
A falta ou reduzida existência de referências femininas no mercado, fez com que Júlia tivesse muitas resistências no meio do caminho: “Nunca sonhei em ser fotógrafa, quando comecei tentei ver referências mas mesmo sem encontrar não desisti”.
‘Tu és uma menina, não sabes nada disso’
Tanto Laércia como Júlia lembram-se de episódios, ao longo das suas carreiras, onde o seu profissionalismo tenha sido colocado em causa pela simples razão de serem mulheres.
“Muitas vezes me disseram que existem assuntos ‘que são perigosos’ e que por isso não devem ser reportados por mulheres”, diz Laércia que nos detalhou um evento em que se sentiu intimidada, quando queria investigar sobre a exportação clandestina de castanha de Caju na fronteira entre Senegal e a Guiné Conacri.
“Eu sabia que corria grande risco em fazer aquele trabalho. Tentei contactar fontes oficiais mas todos recusaram. Nestas instituições, recebi ameaças como ‘sabes que ainda és uma menina? Tens muita coisa pela frente. É melhor não fazer isso”, diz a jornalista.
Apesar das dificuldades, e de ter pensado em desistir em alguns momentos, Laércia enfrentou os medos e foi até à fronteira buscar informações no terreno, que diz lhe foram “muitíssimo valiosas”.
Esta reportagem sobre o “controlo fronteiriço” valeu a Laércia o prémio de melhor trabalho de investigação da Agência Reuters em 2021.
Solange Pinto, jornalista da Rádio Somos Todos Primos (RSTP), um projecto de media de São Tomé e Príncipe, considera que, à semelhança das outras realidades, “as mulheres estão muito pouco representadas no jornalismo em São Tomé e Príncipe”.
“Parte disso, é pela condição precária do jornalismo no nosso país. Isto afasta as pessoas da profissão, sobretudo as mulheres”, diz Solange.
Solange, que diz que a representatividade “enriquece” o jornalismo, defende que é papel das instituições do Estado melhorar a condição da representatividade nos órgãos de comunicação social, começando pela educação de mulheres e meninas sobre a importância desta atividade.
“É urgente que se pressione o poder para que as coisas mudem de figura”, diz a jornalista.
Um estudo sobre as barreiras que as mulheres jornalistas enfrentam na África Subsariana, publicado em 2020 pela Fojo Media Institute (Fojo) e African Women in Media (AWiM), revelou que “as mulheres africanas lutam contra o preconceito de género e o preconceito patriarcal arraigado para garantir posições como jornalistas, em primeira instância.”
“Quando conseguem entrar no jornalismo, (elas) encontram um sistema falido que impede o seu progresso em cada etapa da sua carreira. Algumas sofrem em silêncio e outras são obrigadas a abandonar a profissão”, diz o estudo.
‘Isto vai, isto fica’. As mulheres em posições de chefia
Para além de uma maior representatividade feminina nas redações dos PALOP, que segundo as nossas entrevistadas “agregaria bastante” à qualidade do jornalismo destes países, elas estão também preocupadas com a falta de mulheres em posições de chefia e liderança.
“É difícil encontrares uma mulher a dirigir uma redação. Particularmente, não conheço nenhuma na Guiné Bissau”, lamenta Laércia Insali.
Apesar da situação ser um bocado diferente em países como Angola, o maior dos PALOP, ainda há caminho por ser feito.
Em Angola, apesar de existirem algumas mulheres em posição de chefia e liderança nalguns órgãos estatais e privados, nenhuma mulher chegou ainda ao cargo de presidente do conselho de administração de nenhuma empresa pública de comunicação social.
Suzana Mendes foi a primeira mulher a ser nomeada para o cargo de editora-chefe de um jornal semanário na Angola independente. O marco deu-se em 2005 no extinto “Semanário Angolense”.
A jornalista, membro fundadora do “Fórum das Mulheres Jornalistas” e actual integrante do Conselho da República, considera que “o facto de ter sido a primeira mulher a ser nomeada para dirigir a redação de um jornal no país demonstra o quão difícil é para as mulheres atingirem os lugares de topo nas redações”.
Para Suzana Mendes, a representatividade feminina é crucial, sendo “o jornalismo uma profissão nobre que defende os valores de uma sociedade moderna como o respeito pelos Direitos Humanos”.
Mendes não é indiferente aos avanços feitos em Angola, destacando que “actualmente temos mais mulheres nas redações e também nos conselhos de administração das empresas públicas, temos mulheres editoras nos diferentes órgãos de comunicação”.
Ainda assim, a jornalista defende que há ainda caminho por percorrer. “A liderança dos órgãos de comunicação continua nas mãos dos homens, o poder de decisão está nas mãos dos homens na esmagadora maioria dos casos mas as mulheres estão nas redações, fazendo o seu trabalho com empenho e dedicação.”
Questionado pela VOA sobre os desafios das mulheres jornalistas dos PALOP, o Centro Internacional de Jornalistas (ICFJ), baseado em Washington D.C, disse que ‘está a par destas dificuldades’ e que pretende continuar a investir em projectos formação, para jornalistas e lideranças dos media, para garantir uma melhoria na representatividade das mulheres nas redações.