O Tribunal Constitucional (TC) de Cabo Verde considerou inconstitucional a jurisdição dos Estados Unidos sobre seus militares que venham a ser acusado de crime no arquipélago, estipulada no Acordo sobre o Estatuto das Forças dos Estados Unidos da América, conhecido por Sofa, devido às siglas em inglês.
O órgão não declara a inconstitucionalidade de quatro normas requeridas, entre elas o nº 2 do artigo IV do acordo “porquanto o sentido que dela se extrai não autoriza a instalação de uma base militar norte-americana em Cabo Verde, e, por conseguinte, não viola o disposto no nº 4 do artigo 11º da Constituição da República".
No entanto, no acórdão colocado na página do TC nesta quarta-feira, 8, os juízes decidiram declarar "sem redução do texto, a inconstitucionalidade do segundo segmento do número 2 do artigo III do Acordo sobre o Estatuto das Forças dos Estados Unidos da América ora em apreciação, na exacta acepção interpretativa de que permite o exercício de poderes tipicamente jurisdicionais sobre o seu pessoal em território cabo-verdiano por crimes praticados durante a estadia dessas forças no Arquipélago por violação do princípio da soberania nacional, do princípio da tipicidade dos órgãos de soberania e dos órgãos judiciários, em particular, plasmados, respectivamente, no nº 1 do artigo 1º e no nº 1 do artigo 11º, bem como nos artigos 119º e 214º, todos da Constituição".
Na verdade, esta parte do acordo está no centro da polémica criada em torno do documento que define o estatuto dos militares americanos em solo cabo-verdiano.
Os juizes acordaram que essa parte do texto viola vários artigos da Constituição, nomeadamente o número 1 do artigo 1º onde se declara Cabo Verde como "uma República soberana, unitária e democrática, que garante o respeito pela dignidade da pessoa humana e reconhece a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos humanos como fundamento da comunidade humana, da paz e da justiça".
O acórdão também refere o nº1 do artigo 11º, que define que o "Estado de Cabo Verde rege-se, nas relações internacionais, pelos princípios da independência nacional, do respeito pelo Direito Internacional e pelos Direitos do Homem, da igualdade entre os Estados, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados, da reciprocidade de vantagens, da cooperação com todos os outros povos e da coexistência pacífica".
Por outro lado, o TC decidiu também não declarar a inconstitucionalidade do nº 2 do artigo III do acordo “por alegada violação do direito a não ser discriminado, do princípio da soberania popular e das regras respeitantes à responsabilização dos titulares de cargos políticos”.
O mesmo parecer diz que a alegada violação da garantia constitucional de não extradição por crimes a que corresponda no Estado requerente pena de morte, e da garantia de não extradição de cidadãos cabo-verdianos em casos a que correspondam no direito do Estado requerente pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com caráter perpétuo ou de duração indefinida, “sem prejuízo do dever do Estado de Cabo Verde se abster de colaborar com os Estados Unidos na detenção e transferência da custódia do seu pessoal ou em qualquer outro ato de cooperação judiciária para efeitos de instauração de processo crime ou cumprimento de pena por crimes cometidos em Cabo Verde puníveis com a pena de morte, prisão perpétua ou de duração indefinida de acordo com o ordenamento jurídico dos Estados Unidos da América”.
O acórdão responde a um pedido fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade feito por 27 deputados do PAIGC, na oposição, ao acordo assinado pelo Governo e ratificado pelo Presidente da República em 2018.
O acordo, entre outros pontos, autoriza os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre o pessoal dos Estados Unidos durante a sua permanência em território da República de Cabo Verde.
Observadores e alguns setores questionaram o acordo, apontando, por exemplo, que os direitos de um cabo-verdiano que venha a acusar um militar americano de crime ficarão limitados, em virtude de o mesmo vir a ser julgado nos Estados Unidos e não em Cabo Verde, colocando em causa a presença e possiblidade de recorrer num tribunal americano.
Nem o Governo cabo-verdiano, nem as autoridades americanas reagiram ao acordão.