A Argélia do Século XXI, nunca viveu período tão decisivo quanto o actual, no sentido de se definir entre o reinante sistema multipartidário e a Democracia efectiva desejada por todos, sobretudo pelos argelinos.
Num resumo telegráfico, poderemos considerar 3 períodos fundamentais da História recente deste país:
O período pós-independência (1962), o período pós-guerra civil (1999), o qual aliás coincide com a chegada à presidência do actual Presidente Abdelaziz Bouteflika e, o período actual, o qual faria sentido chamar-se de período pós-Bouteflika, após 4 mandatos presidenciais e 20 anos de Poder.
Acontece que Bouteflika Presidente, quando toma o Poder em 1999, tem como imperativo óbvio reorganizar um país, vasto e completamente destruído pela Guerra Civil entre Governo/Estado e Islamistas, a qual devastou o território durante toda a década de 90. Qual foi a forma de o fazer?
Híper-presidência num ambiente totalitário
Criando um sistema “híper-presidencial” (a expressão é de Amel Boubekeur do Brookings Doha Center), que curiosamente, ou talvez não, foi criando obstáculos a uma desejada renovação no futuro, já que fez o Poder e o FLN (Front de Libération National), alhearem-se da Sociedade Civil, na ânsia do estabelecimento da Ordem e da desintoxicação mental necessária após 10 anos de “injecção islamista”.
Ora este ambiente totalitário, de regime militar, acabou por “embrulhar” também a oposição numa fixação/obsessão pelo Poder, anulando-a por completo em iniciativa, criatividade e liberdade, sendo esta a situação política actual.
Em resumo, os argelinos, durante os últimos 20 anos, não estiveram interessados em reformas políticas, em democratização, mas sim em arranjarem emprego e em verem os seus direitos respeitados no que toca a saúde e educação. Prova disso, foi o período da Primavera Árabe, que passou praticamente ao lado destes.
O que mudou a 22 de Fevereiro?
Na sexta-feira, 22, após um apelo difundido nas redes sociais ao longo da semana, em rejeição a um 5º mandato do actual Presidente, a população saiu das mesquitas e das respectivas casas, em família e, derrubou finalmente o muro do medo, imposto durante quase 10 anos de Guerra Civil. A explicação para este fenómeno é simples, já que a geração que nasceu durante a década de 90 e os mais recentes millennials, não viveram a hogra (vergonha, humilhação, desprezo) da luta pela libertação nacional, nem da Guerra Civil, apenas a conhecendo pelas estórias contadas pelos membros mais velhos da família.
A hogra faz parte da memória colectiva argelina, da mesma forma que as estórias da PIDE o fazem da memória colectiva dos portugueses e, foi precisamente esta geração de filhos que fez a ponte com os avós e ensandwichou os pais no meio, permitindo que famílias inteiras, barbudos e mulheres de cabeça destapada marchassem lado-a-lado, manifestando-se por um objectivo comum, a rejeição do que parece cada vez mais inevitável, um 5º mandato Bouteflikiano. A mobilização decorreu de forma pacífica e ordeira, gritando slogans de que vivem numa República e não numa Monarquia e que Bouteflika não se trata de um enviado de Deus, como já muitos políticos e clérigos o têm afirmado, na tentativa de justificar a longevidade do actual Presidente no Poder.
Este atrevimento, que “acordou” mais de 20 cidades desde a Capital Argel até ao mais recôndito ponto do país e que contabilizou cerca de 1 milhão de atrevidos na rua, tende a tornar-se viral, estando já marcada nova saída para a próxima sexta-feira 1º de Março, desta feita mobilizando todas as universidades da República, projectando-se que mobilize ainda mais manifestantes, já que os tradicionais “esperistas” (os que ficam sempre à espera) não têm razões para terem medo, após o precedente levantado na semana passada.
O dilema argelino
De momento, é preciso aguardar o próximo dia 3 de Março, data limite da entrega de candidaturas para as eleições de 18 de Abril, mas espera-se que hajam 5 ou 6 candidatos. O dilema argelino é simples de equacionar, sabem o que não querem, um 5º mandato do actual Presidente, mas nem a oposição nem o regime, apresentaram até ao momento um candidato sólido e mobilizador do eleitorado. E, face a esta mobilização popular, especula-se já sobre um adiamento das eleições, sobretudo bem-vindo ao FLN, dividido entre o clã Bouteflika e todas as outras tendências e interesses.
Seja como for, a Argélia encontra-se hoje mais democrática que nunca!
Raúl M. Braga Pires
Politólogo/Arabista Voz da América-português