A chefe da bancada parlamentar da Renamo, Ivone Soares, exige do governo explicação plausível sobre os ataques que têm atormentado a população da província de Cabo Delgado.
Desde outubro de 2017, mais de 60 pessoas foram assassinadas, centenas feridas e casas incendidas, nos distritos desta província nortenha rica em recursos minerais.
Esta semana, as autoridades moçambicanas divulgaram nomes de seis pessoas tidas como mentoras dos ataques, mas não deram detalhes sobre as suas motivações.
Eliminar os focos de descontentamento passa pela boa governação, que não existe.Ivone Soares
Há análises que apontam que questões religiosas e disputa de recursos naturais podem estar na origem dos ataques.
Localmente, os atacantes são conhecidos por Al Shabab, mas o grupo insurgente somali com o mesmo nome nunca reivindicou qualquer acção ou ligação. Nenhum outro grupo reivindica os ataques.
Ivone Soares adverte sobre o risco de a situação agudizar se a raiz do problema não for cabalmente respondida pelas autoridades de Maputo.
“O país tem descontentes por todos os lados (…) e a resposta passa pela boa governação”, diz a deputada de 38 anos de idade, que acaba de ser reeleita vice-presidente do Parlamento Africano, com responsabilidade na campanha global para a criação do parlamento das Nações Unidas.
Nesta entrevista realizada, em finais de julho, na Assembleia da República, em Maputo, a jovem que lidera a bancada parlamentar da Renamo, fala também da necessidade haver mais mulheres na politica moçambicana.
Mas mulheres que se façam valer pela contribuição para o país e não mera representação, ressalva.
Desde Outubro do ano passado, a província de Cabo Delgado tem sido alvo de violência de homens armados. Qual é sua leitura?
Penso que realmente esta questão é muito delicada, muito delicada. Era preciso que se fizesse um estudo profundo das reais causas de toda esta situação, que está a acontecer no norte de Moçambique.
É claro que em Moçambique existem assimetrias sociais gravíssimas, de cortar o coração de qualquer um que seja amante do respeito pelos direitos humanos. É verdade que existem situações em que as pessoas acordam e não sabem o que vão comer, sem perspectiva. Não têm emprego, não têm habitação e vivem em casa dos pais até os 50 anos, sem a mínima esperança de que a vida vai melhorar amanhã.
E é nestas condições que o Estado também mostra-se muito apático, completamente ausente. Isto é perigoso.
Enquanto o Estado continuar muito apático ao sofrimento do cidadão, podemos correr o risco de ter muitos outros movimentos de descontentes que vão fazendo situações destas e que vão realmente criar uma grande instabilidade.
Há o problema de má distribuição da renda; educação que não tem qualidade alguma; médicos que trabalham sem motivação, sem meios, nem medicamentos; salários baixíssimos para os funcionários públicos...Ivone Soares
Acredito que seja fundamental descobrir primeiro quem são os intervenientes ou interlocutores, que podem ser válidos para uma comunicação e procurar saber quais são as reivindicações, estudar uma forma de evitar focos de conflito, porque Moçambique parece um barril de pólvora.
A questão de descontentes é preocupante...
Há descontentes por tudo quanto é lado; descontentes nas cidades; descontentes nas vilas; descontentes que são funcionários do Estado; descontentes que são desempregados; descontentes que são de partidos políticos, que notam que vão às eleições e não há transparência, e depois são as fraudes que perpetuam o mesmo regime há mais de 40 anos, com todos os problemas que que traz consigo - a má governação, as dívidas inconstitucionais e ilegais...
Há o problema de má distribuição da renda; educação que não tem qualidade alguma; saúde onde os médicos trabalham sem motivação, sem meios, nem medicamentos; salários baixíssimos para os funcionários públicos.
Os focos de conflito existem em praticamente todo o país (...) que está numa autêntica situação de a qualquer momento explodir.
Eliminar os focos de descontentamento passa pela boa governação, que não existe.
Há muita pobreza nos distritos com recursos naturais...
As pessoas em distritos como Mocímboa da Praia (Cabo Delgado) e Palma são muito pobres.
Os recursos naturais são controlados por indivíduos ligados à Frelimo, partido no poder.
É preciso eliminar os problemas que os mais pobres têm no pais, através da promoção de investimento que garanta emprego, habitação, agua, electricidade, boa educação.
Se fores agora a Mocímboa irás ver quão pobres são as pessoas, o risco de morrerem de malária é alto. Será que não podemos combater a malária?
Por quê não realizam uma discussão envolvendo os partidos da oposição para encontrar uma solução para este problema? Ninguém percebe!
Até que ponto pode ser um problema religioso?
Em Moçambique não temos problemas religiosos, culturais ou étnicos. Temos problemas relacionados com ideologias; pessoas que não concordam com a forma de governação.
Não acredito que muçulmanos estão a fazer estes ataques. Se calhar, podemos encontrar um ou outro muçulmano, mas do meu ponto de vista o principal problema é a falta de boa governação, não muçulmanos contra cristãos.
Foi reeleita vice-presidente do Parlamento Africano. De que forma usa a sua presença na política para a juventude?
Eu tenho aproveitado toda a oportunidade para promover a agenda da juventude, em particular da rapariga.
Temos o grande desafio que é enfrentar as barreiras que se colocam para a mulher participar activamente na vida política do dos países e das comunidades. Até na família, muitas vezes a mulher melhor não tem palavra.
A mulher não pode ser vista como uma adversária que vai para um lugar que por natureza é considerado do homem.Ivone Soares
Estar nesta condição de jovem e com responsabilidades junto ao Parlamento Pan-Africano é uma oportunidade de poder dizer que é preciso abrir mais espaços para a mulher jovem, para criar mais espaço para que tenha acesso a uma educação de qualidade e estar melhor preparada para compreender os vários fenómenos, e por via disso dar a sua opinião e promover a entrada de mais mulheres em posições de debate de ideias, que possam melhorar a vida.
Procuro sempre promover a inclusão da rapariga, acesso à saúde de qualidade, acesso à informação sobre os cuidados a ter com o seu corpo e a higiene do coletivo.
É sempre importante poder fazer perceber aos homens que a mulher não é adversária. A mulher não pode ser vista como uma adversária que vai para um lugar que por natureza é considerado do homem. Há espaço para todos, homens e mulheres, e juntos temos que acreditar que podemos fazer com que a áfrica se desenvolva.
Felizmente tem havido uma boa receptividade.
Eu trabalho praticamente num meio muito masculino, não só no Parlamento Africano, mas também internamente, o parlamento moçambicano também é maioritariamente dominado pela presença masculina. A bancada parlamentar que dirijo, por exemplo, também tem maioritariamente homens.
Ter que abordar os colegas homens e pô-los á compreender que temos que avançar todos juntos é um desafio. Muito interessante é perceber que eles compreendem que apesar de ser mulher e jovem o que importa é a capacidade que existe para juntos fazermos o trabalho acontecer.
Alguma vez sentiu uma reaccão machista?
Penso que nalgum momento pode haver um ou outro que possa ter ideias machistas, mas não é a maioria, não é o comportamento da maioria. Se eu disser que nalgum momento senti qualquer tipo de discriminação ou qualquer tipo de perseguição eu estaria a ser maldosa.
Tenho total apoio dos meus colegas. Não criam nenhum tipo de dificuldade, principalmente porque estamos juntos no momento da planificação. Discutimos e depois partimos para a implementação em conjunto. Não há espaço para a exclusão.
Mulheres na política, número ou capacidade?
Bom eu penso que os partidos políticos têm de fazer um esforço muito grande de colocar nas listas cada vez mais mulheres. Eu ainda não estou satisfeita.
Ainda acho que devemos garantir que se olhe para o projecto zebra, por exemplo, que significa uma mulher e um homem, assim sucessivamente ao longo da lista.
Mas também se as mulheres forem na maioria mais competentes, eu não concordo que sejam retiradas da lista para acomodar homens, vice e versa.
Portanto, é preciso garantir que a competência esteja lá e não olhar para as questões de género em termos de símbolos. Devemos olhar para a capacidade dessa mulher ou homem que estamos a trazer para a assembleia municipal, provincial ou da república, porque no fim do dia o que conta é a qualidade do debate e a qualidade das leis produzidas e publicadas.
Tal como dizia o presidente Dhlakama, 'quem tem medo, acaba escravo do seu medo'
Acredito que se conseguirmos ter espaço para as mulheres mostrarem a sua capacidade, elas vão realmente surpreender, porque a mulher tem a vantagem de que não é corrupta – pode haver excepções - mas por natureza ela gosta da transparência e trabalha sempre olhando para a transparência do processo.
As mulheres prestam contas com muita facilidade, o que é muitas vezes complicado ver na actuaçāo dos homens, que não prestam contas.
Quais são os seus sonhos?
Vou escrever livros, escrever memórias de vários momentos, transmitir o parco conhecimento que fui acumulando e partilhar com as raparigas. Inspirar as novas gerações para não temer absolutamente nada – tal como dizia o presidente Dhlakama “quem tem medo, acaba escravo do seu medo”.
Acho fundamental que a rapariga e o rapaz se dediquem aos estudos, possam ter oportunidades de participar, efectivamente avançar sem medo, mas sempre respeitando as regras, porque o sucesso é garantido quando se trabalha com honestidade.
Não ambiciono (mais cargos) porque acho que Moçambique não estaria preparado para ter jovens mulheres a assumir outros postos além dos que já assumi até aqui, por causa da nossa cultura.Ivone Soares
Espero que daqui a 10,20,30 ou 40 anos tenha a oportunidade de transmitir o pouco que fui aprendendo com as várias personagens que passaram pela minha vida na caminhada política.
Não ambiciona uma posição mais alta?
Não ambiciono. Gostaria sinceramente de colaborar. Não ambiciono porque acho que Moçambique, em particular, não estaria preparado para ter jovens mulheres a assumir outros postos além dos que já assumi até aqui, por causa da nossa cultura.
Mas isso é desistir...
(Rindo) Não se trata de uma desistência, porque não há nada em perspectiva. Não é uma desistência. É apenas uma constatação de que se comecei a fazer política aos 14 anos e hoje aos 38 estou a representar Moçambique no Parlamento Africano e foi me dada a responsabilidade de ser co-presidente da campanha global para a criação do Parlamento das Nações Unidas, é porque há reconhecimento do trabalho.
Querer mais do que isto poderia ser uma ambiciosa desmedida. Nós temos que saber quais são as nossas capacidades, nossas limitações e agradecer a Deus por aquilo que conseguimos e não pretender ter mais e mais, fazer acumulação sem capacidade de resposta. É preciso fazer cada coisa no seu tempo e com a devida perfeição para beneficiar o cidadão sem olhar para a cor partidária.