No coração da província moçambicana Cabo Delgado, onde o terrorismo desafia a segurança e a estabilidade, há sinais de um esforço para que as mulheres e crianças não sejam julgadas arbitrariamente.
Em meio aos julgamentos de suspeitos da prática do crime de terrorismo, autoridades judiciais dizem que buscam equilibrar a aplicação da lei com a proteção dos direitos das vítimas, especialmente entre aqueles grupos.
"Nós não podemos, simplesmente, considerar que uma pessoa é terrorista, tenha praticado atos terroristas, por ter sido encontrada numa região de terrorismo. Há a possibilidade da pessoa ser vítima”, diz a juíza Adelina Afonso, presidente da Primeira Secção Criminal do Tribunal Judicial da cidade de Pemba.
Afonso sublinha que cada caso é visto individualmente.
“Faz-se uma análise para compreender em que circunstâncias aquela pessoa foi encontrada, por que situações aquela pessoa passou para determinar-se a sua participação, ou não, em actos terroristas,” afirma a juiza.
Este cuidado tem sido particularmente importante nos casos de mulheres que, muitas vezes, aderem aos grupos terroristas não por vontade própria.
Ressocialização
Adelina Afonso explica que "as mulheres que chegam ao tribunal alegam que foram sequestradas e forçadas a desempenhar papéis de espionagem ou escravidão" e, por isso, ela diz que as crianças resgatadas dos grupos armados são tratadas com especial atenção.
Para o procurador provincial-chefe de Cabo Delgado, o foco deve estar na ressocialização, “mais apoio psicológico".
"Há um certo risco de, futuramente, as crianças poderem ficar traumatizadas pela vida futura (...) poderá haver esse risco provavelmente se falhar o processo de apoio social”, alerta Octávio Zilo
Não há números certos, mas sabe-se que centenas de mulheres e crianças foram raptadas desde que os ataques terroristas começaram em Cabo Delgado, em outubro de 2017.
O Instituto de Psicologia da Paz de Moçambique (IPPM) está presente em Cabo Delgado e tem trabalhado com vítimas de terrorismo.
A diretora-geral adjunta e coordenadora de Prevenção e Combate ao Extremismo Violento daquele instituto diz que as crianças “levadas para as bases dos grupos armados têm destinos diferentes consoante o seu sexo e idade”.
Ana Isabel Mota explica que “os rapazes mais novos, com idades até 12 anos, são treinados no uso da catana, enquanto os mais velhos recebem treino militar com armas de fogo e são forçados a participar em combates".
"Muitas destas crianças são forçadas a matar para garantir a própria sobrevivência. Já as meninas enfrentam níveis extremos de violência sexual e maus-tratos, sendo frequentemente escravizadas”, alerta aquela responsável.
Justiça restaurativa
Para evitar que o recrutamento aconteça, Mota defende uma abordagem mais integrada e coordenada entre as autoridades, a sociedade civil e a comunidade internacional.
As medidas essenciais citadas por ela incluem o fortalecimento da segurança comunitária, campanhas de sensibilização, bem como apoios às famílias vulneráveis.
O IPPM está a apoiar o UNICEF e o Executivo moçambicano na implementação de um modelo considerado inovador de reintegração psicossocial para crianças retornadas de bases dos terroristas.
Esta tarefa, diz Ana Isabel Mota, não tem sido fácil porque “o financiamento disponível para este tipo de intervenção é frequentemente insuficiente, considerando a necessidade de acompanhamento a longo prazo”.
Aquela perita formadora da NATO e especialista em terrorismo e contra-terrorismo pede à comunidade internacional para "não abandonar Cabo Delgado" e insiste que o sistema judicial moçambicano adopte uma abordagem baseada na chamada justiça restaurativa, garantindo que as crianças recebam apoio psicológico sério e tenham oportunidades de reintegração.
Revisão da lei
Entretanto, o sistema da justiça enfrenta ainda grandes desafios logísticos e legislativos.
Perante este cenário, a juíza Adelina Afonso diz que “talvez seja necessário pensar-se numa revisão da Lei de Terrorismo, na perspetiva de abranger, não só as questões processuais, mas também as questões relativas às outras medidas necessárias em relação ao crime de terrorismo”
“É preciso que haja algum mecanismo de proteção a essas vítimas, já que elas ficam numa situação de vulnerabilidade, havendo o risco de voltarem a serem vítimas dos mesmos atos”, acrescenta aquela magistrada.
Neste momento, a instrução criminal de processos relacionados com os crimes de terrorismo é feita com o auxílio do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC).
Por seu lado, Octávio Zilo diz que tem sido um grande desafio fazer investigação e propõe a criação de unidades especializadas para a recolha de provas em zonas de conflito, garantindo uma melhor cadeia de custódia e eficácia nos julgamentos de arguidos suspeitos de serem terroristas.
O procurador provincial-chefe de Cabo Delgado acrescenta que, em relação aos crimes de terrorismo e outros conexos, a instituição tramitou, no ano passado, 123 processos, dos quais foram concluídos 63 processos-crime, com 41 arguidos presos.
Muitos desses arguidos foram condenados a penas que variam de 20 a 30 anos de prisão pela prática dos crimes de adesão à organização terrorista, terrorismo, ações conexas e financiamento ao terrorismo.
Os ataques terroristas em Cabo Delgado já provocaram a morte de cerca de seis mil pessoas.
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