Milhares de “crianças e mulheres invisíveis”, que oficialmente não existiam, por falta de prova legal de identidade, obtiveram uma certidão de nascimento pela primeira vez numa campanha que levou os serviços de registos de nascimentos a comunidades carenciadas em áreas remotas de seis províncias de Moçambique, disse à VOA nesta terça-feira, 11 fonte oficial.
A campanha de registos de nascimento, lançada a 30 de Abril para celebrar o mês da mulher moçambicana, decorre nas províncias de Nampula (norte), Sofala (centro) e Gaza, Inhambane e Maputo cidade e província (sul) e superou a meta de 20.000 registos, sendo crianças (12.000 registos) e mulheres (8.000 registos).
Ao todo foram registadas 21.249 pessoas, sendo 10.488 crianças e 10.761 mulheres.
“As brigadas de registo tiveram muitas enchentes, isso mostra que as populações estão sensibilizadas”, para a necessidade de registo, vincou Claida Monjane, directora nacional adjunta dos registos e notariado.
Numa nota, em resposta ao pedido de entrevista da VOA, a responsável avança que o serviço tem como maior desafio a criação de postos fixos de registo civil nas unidades sanitárias e descer a nível dos postos administrativos.
Igualmente, “intensificar a mobilização das populações da importância de registo civil á nascença”, acrescenta, além de modernizar os serviços com acervos digitais.
A insuficiência dos registos civis em Moçambique e na África continua a excluir as crianças de frequentar escolas e de se inscrever em programas sociais, além de ter acesso a tratamentos hospitalares e a campanha do governo está a recuperar “crianças invisíveis” para estatísticas oficiais.
Em Moçambique, apenas 49 por cento das crianças com menos de cinco anos têm uma certidão de nascimento.
Baixa cobertura
Vários estudos indicam que mais de 50 por cento das crianças (a mesma média de Moçambique) que nasceram em África não têm existência legal por falta de registo, serviços que foram largamente perturbados ou interrompidos durante a pandemia da Covid-19.
Estimativas dos autores das pesquisas indicam que o número vai ultrapassar 100 milhões de crianças sem registo até 2030, se não houver investimento neste serviço público.
Entretanto, o sociólogo Abílio Mandlate, observa que apesar do registo ser gratuito à nascença, a baixa cobertura dos serviços, longas distâncias e altos custos de transporte e taxas de registo atrasadas e o facto da maioria dos moçambicanos viver à margem da economia e política, contribui para a crescente existência de “crianças invisíveis”.
“Há muitas pessoas que estão fora desse sistema de Estado. Você se regista para abrir uma conta bancária, para ter um número telemóvel, para ter conta de moeda eletrónica, identificar-se na escola, mas há muitas pessoas que estão fora desse sistema de provimento do serviço do Estado, e para essas pessoas ter ou não ter documento não faz muita diferença”, precisa Mandlate, anotando que o registo devia ser integrado nas maternidades das unidades sanitárias.
“Temos ainda muitos problemas de pessoas viverem à margem do sistema justamente porque o sistema não impacta diretamente nas suas vidas, por isso não vêem a necessidade de se registar, além dos serviços de registo estarem muito distante dos locais onde as pessoas vivem”, enfatiza.
Crenças
Já o antropólogo, Killian Dzindua, entende que crenças e algumas práticas culturais continuam a colocar muitas crianças fora da programação estrutural do Estado, e a ausência de registos tem impacto nos indicadores de desenvolvimento do país para o desenho de políticas, daí que defende a massificação dessas campanhas de registos.
“Numa família, num sentido mais tradicional, a linha patrilinear pode atribuir o nome a criança e para essa família o fator da criança já ter nome, pode ser suficiente para acreditar que já está inserida na comunidade. Há alguns que ainda pensam que este processo de registo formal é do colono, e que não tem nada haver com nossas crenças e práticas culturais”, explica Dzindua.
“Crianças que nascem numa relação de poligamia, num contexto em que o pai tem mais de duas esposas, ele pensa que o fator de nascer já é suficiente, e tem que existir alguém para lhe sensibilizar da necessidade de registar essas crianças, porque para ele o número de crianças e o número de esposas é que interessa e a parte formal de registo pode não ter tanta importância”, afiança.
Acrescenta que “as pessoas devem entender que sem o registo há muitas oportunidades que as suas crianças deixam de ter na vida”.
Numa nota publicada na sua página semana passada, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), indica que a falta de uma certidão de nascimento pode tornar uma criança mais suscetível a uniões prematuras, ficar sem nacionalidade [apátrida] ou ao trabalho infantil.
A organização avança que formou e equipou brigadas móveis da Conservatória do Registo Civil do Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, num esforço para fortalecer o sistema de registo civil e estatísticas vitais de Moçambique.
“O UNICEF tem apoiado o Governo de Moçambique a expandir o acesso através da abertura de 152 postos de registo civil nas unidades sanitárias, formação de técnicos de registo, digitalização do sistema de registo civil, e atividades de sensibilização ao nível da comunidade”, refere.
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