Ao ganhar a eleição presidencial em Cabo Verde, no passado 17 de Outubro, na primeira volta, José Maria Neves definiu a estabilidade nacional como seu objectivo permanente num mandato de coabitação com um Governo de outra sensibilidade política e assumiu-se como um "Presidente de todos".
Nesta entrevista à VOA, o quinto Chefe de Estado cabo-verdiano e antigo primeiro-ministro em três mandatos, diz-se preparado para ser árbitro, parceiro do Governo, fazedor de consensos entre todas as sensibilidades do país para um novo pacto para ilhas, o ouvidor geral da República e o principal embaixador do país, cuja política externa deve ser inteligente, pragmática e realista.
VOA - Durante a campanha disse que ia ser um Presidente de todos, mas depois de vestir a camisa de líder do Executivo e de um partido político durante 15 anos, como fazer para vestir agora uma camisa supra-partidária e presidencial?
José Maria Neves (JMN) - Durante todos esses anos fui jogador e treinador no campo político cabo-verdiano, a partir de agora sou árbitro e como árbitro serei imparcial e agirei nos termos da Constituição da República, que conheço muito bem. Trabalhei com três Presidentes da República e durante a minha governação houve estabilidade política, estabilidade social e institucional, e devo dizer que sinto-me preparado para ser um árbitro absolutamente imparcial, aberto a todas as sensibilidades políticas e sociais e pronto a trabalhar para servir de factor de construção de consensos e para apoiar o Governo, as autoridades locais, a sociedade civil, os cidadãos, enfim Cabo Verde, por um lado, de modo a fazermos face à crise para reconstruirmos o país pós-pandemia e, por outro, acelerar o passo na modernização e na transformação do país.
VOA – Após a sua vitória, falou em ajudar a mitigar os efeitos da seca devido ao mau ano agrícola e na recuperação da pandemia, que, no entanto, são tarefas do Executivo. Como poderá, sendo Presidente da República, ajudar o Governo a resolver esses problemas que, nas suas palavras, são bicudos e devem ser enfrentados o mais rapidamente possível?
JMN -Para garantir a retoma do crescimento económico e a diversificação da economia, porque não podemos estribar a nossa economia apenas no turismo, temos, em primeiro lugar, de ganhar a campanha da vacinação, uma tarefa essencialmente do Executivo, mas o Presidente pode apoiar, pode mobilizar a nação, pode mobilizar parcerias nacionais e internacionais para concluirmos esse processo com sucesso. E nessa linha eu irei trabalhar em estreita cooperação com o Governo e com as autoridades locais para conseguirmos com sucesso concluir o programa de vacinação, imunizar a população e garantir a retoma do turismo, que é o motor do crescimento económico, e a diversificação da economia.
Quanto ao mau ano agrícola, também é uma actividade do Governo, que já anunciou um plano de mitigação, caberá ao Presidente apoiar o Governo nos seus esforços de mobilização de parcerias, mobilização de investimentos para fazermos face ao mau ano agrícola.
VOA – Como primeiro-ministro deixou marcas, quais são as marcas que pretende deixar como Presidente?
Ouvidor geral da República e Presidente de afectos
JMN – Serei um Presidente diferente. Um Presidente presente, um Presidente actuante, um Presidente para fazer face aos desafios do século XXI. Serei um Presidente que adverte quando necessário, um Presidente que cuida, que une e que protege a nação global cabo-verdiana.
A minha grande ambição é puxar a nação para cima, mobilizá-la para os grandes desafios que temos no século XXI, designadamente o desenvolvimento sustentado no horizonte de 2030. Serei o principal embaixador da República porque estarei a trabalhar para promover Cabo Verde no mundo, estarei a trabalhar para garantir a mobilização de parcerias e de investimentos para o desenvolvimento do nosso país e também serei o principal ouvidor geral da República.
Ouvirei todas as ilhas, todos os cabo-verdianos nas ilhas e na diáspora e farei com que as suas aspirações e os seus sentimentos entrem na agenda política, e vou fazer tudo para que essa agenda seja implementada.
Descentralização da Presidência
Mas serei também o Presidente que irá garantir um maior equilíbrio na distribuição do poder entre as ilhas. Precisamos de um novo pacto de poder entre as ilhas, as ilhas precisam de um novo protagonismo, de mais recursos, e estarei presente em todas ilhas.
Vou trabalhar alternadamente nos dois palácios da Presidência, na Praia e no Mindelo, receberei as cartas credenciais alternadamente nas duas cidades, transferirei as reuniões do Conselho da República para Mindelo, transferirei também as reuniões do Conselho Superior da Defesa Nacional, estarei todos os meses em Mindelo e também estarei presente em todas as ilhas, um pouco numa perspectiva de uma Presidência aberta. Um Presidente amigo, um Presidente parceiro.
Serei um Embaixador cultural de Cabo Verde, com embaixadas culturais, estarei a patrocinar actividades culturais, transformarei o Palácio Presidencial num espaço de encontro de culturas. Portanto, um Presidente que irá promover as capacidades, os talentos existentes nas ilhas e na diáspora, um Presidente diferente, um Presidente de afectos.
Recuperar a nobreza da política
VOA – A propósito de descentralização, de todos os sectores há um sentimento da partidarização de toda a sociedade cabo-verdiana. Numa das suas declarações depois da eleição, disse que não vai reunir-se apenas com o primeiro-ministro mensalmente, mas também com a oposição e levar a sociedade civil para a Presidência e ouvir. Que papel pretende desenvolver para inverter esse quadro?
JMN -Irei trabalhar com o Governo, com todos os partidos políticos, com a sociedade civil e fazer cumprir a Constituição. A Constituição diz que ninguém deve ser prejudicado ou condicionado na sua carreira ou no seu emprego por ser do partido A ou do partido B, ou por pensar desta ou daquela maneira. É preciso cumprir a Constituição. Temos uma sociedade muito partidarizada, o espaço público está excessivamente partidarizado, a Administração Pública é excessivamente particularizada e essa partidarização é agravada por uma grande desconfiança mútua entre os partidos. Cabe ao Presidente da República agir no sentido do reforço da confiança mútua entre os partidos políticos na busca de consensos para despartidarizarmos a Administração, para despartidarizamos o espaço público em Cabo Verde e agir no sentido de resgatarmos a nobreza da política.
O Governo democrático é o Governo pela discussão, é o pluralismo, é diferença de dissenso, é possibilidade de participação, e tem que haver uma grande liberdade de expressão, tem de haver espaço de justificação pública das decisões, espaço para argumentação, e estarei a trabalhar com todos os actores políticos no sentido de caminharmos para uma outra forma de fazer política e para que os interesses, as aspirações, os sentimentos dos cabo-verdianos sejam considerados na acção política de todos os dias.
Política externa inteligente, pragmática e realista
VOA -Reuniu-se com o primeiro-ministro e abordaram a política externa, que é uma das áreas fortes da intervenção do Presidente da República. Qual é o seu enfoque nessa acção externa?
JMN – O Governo criou o Ministério da Integração Regional. África é a minha grande prioridade. Cabo Verde só tem importância estratégica se estiver devidamente ancorado em África. Então será uma área em que trabalharei em cooperação estratégica com o Governo para uma inserção competitiva de Cabo Verde no continente africano, desde logo na CEDEAO. Quem dirige a política externa de Cabo Verde é o Governo, mas o Presidente pode dar um grande contributo, particularmente em África, onde os regimes são todos presidencialistas.
A minha conversa com o senhor primeiro-ministro tem muito ver com o reforço da nossa presença na CEDEAO e em África. Depois, temos de ter uma política forte de grande vizinhança, considerando não só a CEDEAO, como também Mauritânia, Marrocos, Angola e África do Sul, mais os Estados Unidos, o Brasil e o Mercosul.
Portanto, assim como temos a parceria especial com a União Europeia, penso importante Cabo Verde continuar a trabalhar no sentido de uma forte parceria especial com o Mercosul, assim como nos aproximarmos da NATO, no sentido de uma parceria no quadro da segurança estratégica, e penso que devemos nos aproximar da Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul para em todo o corredor do Atlântico termos uma participação activa, enquanto um país útil, enquanto um país-ponte, mas também em benefício de Cabo Verde e do seu futuro.
Temos de ter uma política externa pragmática, realista e inteligente, sobretudo com uma forte inteligência adaptativa no sentido de analisar as grandes mudanças que acontecem no mundo.
Também estarei a trabalhar nessa parceria estratégica com o Governo para reforçamos a nossa parceria especial com a União Europeia, com os países asiáticos, com os países do Golfo Pérsico, e as parcerias estratégicas que existem, e desde logo com os Estados Unidos da América, que acolhe uma importante comunidade cabo-verdiana.
As relações com os EUA são fundamentais e não há problema com o SOFA
VOA – E a propósito dos Estados Unidos, o recente caso Alex Saab levantou algumas questões, também há a questão do SOFA (acordo sobre o estatuto dos militares americanos em Cabo Verde), até que ponto um país pequeno como Cabo Verde pode manter a neutralidade na política externa frente a um país como os Estados Unidos que, ao mesmo tempo, mantêm uma cooperação muito forte com Cabo Verde. Quais são as linhas com que se devem coser essas relações?
JMN - Uma política externa neutral, inteligente, pragmática e realista como já disse. As relações com os Estados Unidos são fundamentais para Cabo Verde. Temos de trabalhar todos os dias para levar esta parceria a um patamar muito mais elevado. Nós consideramos que SOFA não é nenhum problema, nós já tínhamos um acordo tipo “Sofa” que permitiu a realização dos exercícios militares da NATO, e tivemos depois outro “Sofa” com o Reino da Espanha.
Com os Estados Unidos, alguns juristas levantaram alguma questão de inconstitucionalidade, por isso a questão arrastou-se um pouquinho mais, mas o Parlamento aprovou, o Presidente já ratificou e não havendo nenhum outro problema de constitucionalidade de fundo, achamos que não há absolutamente nenhum problema precisamente porque em Cabo Verde temos de trabalhar no quadro da segurança corporativa e nós já tínhamos acordos neste sentido tanto com os Estados Unidos, como com a Espanha,Grã-Bretanha, Portugal, França, Alemanha, Brasil, Angola…
Durante os meus mandatos enquanto chefe do Governo fiz absolutamente tudo para uma aproximação estratégica, uma cooperação ao mais alto nível, tivemos dois compactos do Millennium Challenge Account, fui recebido pelo Presidente Obama na Casa Branca, e as nossas relações foram excelentes, tendo como ponto alto a realização dos exercícios militares da NATO em que os Estados Unidos deram uma grande contribuição.
Relativamente a Alex Saab, o processo passou pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Constitucional. Eu não tenho todos os dados, só tenho os dados que saíram na comunicação social e o Presidente da República deve pronunciar-se de modo fundamentado relativamente estas questões e só pronunciar-me-ei se for o caso, no momento certo, quando estiver na Presidência e na posse de todos os elementos que me permitam pronunciar com autoridade.
Ouça a entrevista na rubrica Agenda Africana: