* Gentilmente cedido pela Agência Pública, de autoria de Eliza Capai e Natalia Viana.
As repórteres viajavam em Angola para uma investigação sobre a presença brasileira no país, um dos principais parceiros comerciais do Brasil no continente. Em meio à busca de dados e documentos sobre as empresas brasileiras, foram conversar com jovens locais para entender o contexto mais amplo do sistema político que já foi uma ditadura socialista e agora almeja ser reconhecido como uma democracia plena. Em Angola, elas se depararam com a história dos activistas angolanos presos acusados de conspirar contra o governo.
“Junto com o Luaty, eu estava escrevendo as últimas músicas do meu álbum”, conta o rapper Leonardo Kossengue numa tarde quente e empoeirada de agosto em Luanda, capital de Angola. “Preciso esperar ele sair da cadeia. Não quero terminar sem ele.” Ele falava às repórteres durante um encontro em um local cuidadosamente escolhido para garantir que não seríamos espionados.
Naquela tarde, muitos rappers falaram com admiração sobre Luaty. “Foi o Luaty que me mostrou o rap”, diz um dos jovens, que pediu que não fosse identificado.
Hoje Henrique Luaty da Silva Beirão, de 33 anos, corre risco de vida após completar 23 dias de greve de fome em protesto pela extensiva detenção preventiva sem julgamento. Ele já está preso há 115 dias, o que é ilegal em Angola. Antes disso, passou 85 dias numa cela solitária, com direito a apenas uma hora de sol por dia. “Psicologicamente ele está bem, ainda é a mesma pessoa. Mas fisicamente o corpo está muito cansado”, diz o irmão Pedro Beirão. “Está tomando soro, ou ele não aguentaria mais essa semana.”
Luaty e um grupo de outros 16 jovens, muitos deles rappers, são acusados de um crime inacreditável: conspirar para derrubar o presidente angolano José Eduardo dos Santos, que está no poder há 36 anos.
Catorze deles foram presos em junho, em “flagrante delito”, ao participar de um grupo de estudos aberto numa livraria, onde discutiam o livro Da ditadura à democracia, do pacifista americano Gene Sharp. Um deles foi preso do dia seguinte, e duas jovens foram adicionadas como rés e respondem ao processo em liberdade.
Fazer rap é perigoso em Angola
Filho de um importante aliado do presidente e alto membro do partido governista, o MPLA, Luaty ficou famoso pelo programa de rap que comandava na Rádio LAC. Conhecido como Ikonoclasta, o músico é uma inspiração para dezenas de jovens insatisfeitos com o regime de José Eduardo dos Santos – ou “Kota Zedu” como dizem, uma deferência de respeito pela idade do presidente, que completou 73 anos. Eles aderem ao rap como forma de protesto e de informação. São rapazes conhecidos por nomes como “Albano Liberdade”, “Mbanza Hanza”, “Cheik Hata” ou “Nicola Radical” e que têm entre seus ídolos os Racionais MCs. Através do rap, tentam chamar atenção para os incomensuráveis problemas de Angola; em shows realizados nos musseques – a versão angolana das favelas – e nas frequências de rádio. Segundo maior exportador de petróleo da África, Angola tem cerca de 36% da população vivendo abaixo da linha da pobreza, e possui a pior taxa de mortalidade infantil do mundo.
Um dos jovens entrevistados sugere: “O [presidente] José Eduardo tem que se aposentar. Ele poderia ter um cargo de conselheiro vitalício, ou algo assim. Ele já fez muito pelo país”. É uma postura surpreendente para jovens que se autodenominam “Revus”, diminutivo de revolucionários. Mas Angola é um país que viveu 27 anos de uma guerra civil que até o seu término, em 2002, foi entremeada de massacres que traumatizaram a população. Assim, os meninos repetiram diversas vezes, na entrevista, que não têm nenhuma intenção de pegar em armas. Kota Zedu, precisamos conversar/ Amarra seus cachorros, não deixa eles avançar/ Só queremos conversar, resume uma letra de rap.
Foi Luaty quem capitaneou as primeiras manifestações contra o governo em 2011, no auge da primavera árabe, que todos admiram.
A ideia dos ativistas sempre foi mobilizar a população para uma mudança de regime. Naquele ano, os protestos chegaram a arregimentar centenas de jovens em Luanda, mas foram reduzidos pela pressão e vigilância constante da polícia secreta angolana. Além de episódios de sangrenta repressão. Em março de 2012, por exemplo, quando estavam reunidos na casa do rapper Carbono Casimiro organizando uma manifestação, cerca de 40 rapazes foram atacados por defensores do regime armados de facas e pedaços de paus. Luaty sofreu ferimentos graves na cabeça (foto) e Mbanza Hamza quebrou a omoplata.
Três anos depois, os poucos que seguem indo às ruas para protestar conta o longuíssimo mandato do presidente convivem com repetidas detenções, espancamentos e a pressão das famílias para que parem de falar sobre Angola.
Para as famílias, medo e vigilância
“Nós pedimos pra ele parar porque neste país sabemos que quem vai a favor da democracia, da luta da liberdade pela expressão é visto como uma ameaça. Prendem ele”, diz Marcelina Antônio de Brito, uma das irmãs de Inocêncio Antônio de Brito, o rapper Drux. As irmãs imploraram para o rapaz de 28 anos “parar de ser revolucionário” – o que em Angola significa organizar protestos, grupos de estudo, ou criticar o governo abertamente nas redes sociais. “Isso aperigava a vida dele”, diz Marcelina, que afirma não ter conhecimento da “prática de leitura de livros” pelo irmão. E não é que ela não concordasse com ele. “Eu gosto do rap dele. Ele denunciava que a democracia, em si, é fraca. E praticamente os ricos tornam-se cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres.”
Desde agosto, as irmãs, esposas e mães dos 15 ativistas encarcerados têm liderado um movimento para exigir uma definição sobre a situação dos seus familiares – que ainda não foram acusados formalmente por nenhum tribunal, superando o prazo permitido de prisão preventiva, que é de 90 dias. Logo elas se tornaram também alvo das forças de segurança angolanas. “Eu, particularmente, nunca sofri nenhuma ameaça, mas eu sei que estou a ser seguida. Tem SINSE atrás de mim, acompanhando os meus passos”, diz Gertrudes Dala, irmã de Nuno Álvares Dala, referindo-se ao Serviço de Inteligência e Segurança do Estado. “Eles ficam no bairro, em qualquer lugar que você estiver, ele tá lá despercebido como se fosse uma pessoa qualquer, seguindo o que você tá a fazer. Não sei também se eles querem nos prender… Não sei saber.” Quando a polícia chegou à sua casa para fazer uma busca, “prenderam tudo: telefone, diplomas, computador, tudo! Em casa não tem nada! Tô a viver uma situação…”, desabafa Gertrudes, que era sustentada pelo irmão preso.
Algumas das esposas estão em situação ainda mais precária, como Sara João Manuel, dona de casa que era sustentada pelo marido, o mecânico Fernando António Tomás, o “Nicola Radical”. Desde a sua prisão, recebe ajuda dos irmãos e doações para conseguir manter os dois filhos. Durante uma marcha realizada no início de agosto, Sara foi agredida por policiais, que soltaram os cachorros contra as mulheres. “Não fui pro médico porque não tinha dinheiro, não tinha nada nesse momento, estava sozinha. A pessoa que me ajudava é mesmo ele que tá preso, não tenho como”, diz.
“Um golpe de Estado não se faz com livro, com lapiseiras… Eles são civis, nunca foram militares. Um livro, uma lapiseira vai criar um golpe de Estado?”, raciocina Fernando Baptista, pai de Manuel Nito Alves, um jovem de 18 anos que já fora preso durante dois meses em 2013 por mandar fazer camisetas com a estampa “abaixo o ditador”.
Desde a semana passada, com o risco de vida de Luaty, a situação tornou-se ainda mais tensa.
Quatro vigílias foram realizadas diante da Igreja Sagrada Família, em Luanda, reunindo uma centena de pessoas vestidas de branco e segurando velas. No domingo, foram cercados pela Polícia de Intervenção Rápida (PIR), que trazia um caminhão para lançamento de água e cães treinados. Decidiram abandonar o local. Na segunda-feira, dia 12, um cordão policial envolveu outra igreja onde haveria uma missa pela saúde dos presos. No mesmo dia o Jornal de Angola acusou aqueles que participam das vigílias de “dar sequência ao plano que os 15 arguidos acusados pelo Ministério Público pretendiam executar”. A TV estatal angolana anunciou também que as vigílias são ilegais.
“Vamos seguir fazendo missas, mas não sei como vai ser”, diz a ativista Laurinda Gouveia, uma das acusadas que responde ao processo em liberdade.
Para Pedro Beirão, irmão de Luaty, a questão essencial é garantir a vida de seu irmão, que está determinado a manter a greve de fome se não houver andamento do processo judicial.
Apesar de o Ministério Público ter formalizado a acusação, ela ainda não foi acatada pela Justiça – e nem se sabe quando isso ocorrerá. Apenas depois disso os advogados poderão pedir que os presos respondam ao processo em liberdade. “Passaram todos os prazos e não temos nenhum pronunciamento oficial. Nós, familiares, estamos sempre na espera de alguma coisa, mas ninguém diz nada. E no caso do Luaty se trata mesmo de um caso de vida ou morte”, diz Pedro Beirão.
Quando ler livros é um crime
A Pública obteve com exclusividade o documento de acusação do Ministério Público angolano contra os 17 jovens. Clique aqui para baixar e ler na íntegra uma cópia.
Toda a acusação baseia-se na leitura coletiva de um só livro, de autoria do pacifista americano Gene Sharp, que havia sido adaptado pelo professor Domingos da Cruz e era tema de um grupo de estudo que se reunia todo sábado à tarde na livraria Kiazele, num bairro central da capital.
“Essa obra inspirou as chamadas revoluções nos países da Europa do leste, países nórdicos, países africanos, como Tunísia, Borkina Faso, Egipto, Líbia, alguns países da América Latina etc… que derrubaram os respectivos Governos e Presidentes e cujas consequências de tão nefastas deixaram os países atingidos completamente na desgraça, destruídos pelo vandalismo e pelas guerras que se seguiram”, diz o documento.
O documento descreve a seguir as reuniões, que foram assistidas e filmadas por um informante da polícia infiltrado. “Uma vez cumprido o programa que tinha a duração de três meses, partiriam para a ação prática e concreta, pondo em execução os ensinamentos para o derrube do ‘regime’ ou do ‘ditador’, começando com greves, manifestações generalizadas, com violência (…), com a colocação de barricadas e queimando pneus em todas as artérias de Luanda, com realce nas imediações do Aeroporto 4 de Fevereiro, outros marchando em direção ao Palácio Presidencial, com mulheres e crianças levando lenços brancos, esperando serem seguidos por grupos de todo o país, para ‘destituir o ditador’, que para os arguidos é o Presidente da República, José Eduardo dos Santos.”
O Ministério Público argumenta que a Lei de Reunião e Manifestação angolana apenas permite protestos “onde se reivindicam direitos e melhores condições sociais”. Além disso, “a forma de destituição do Presidente da República expressa e claramente prevista na Constituição apenas pode ocorrer em situações de renúncia, autodemissão ou destituição judicial, e não mediante as ditas manifestações pacíficas”.
“Os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, não obstante saberem que a sua conduta era reprovável, proibida e punida pela lei”, conclui o texto, pedindo a condenação dos 17 jovens por “crime de atos preparatórios para a prática de rebelião” e “atentado contra o Presidente da República ou outros membros de Órgãos de Soberania”.