A Pública
“A economia angolana é inteiramente política, e as oportunidades de negócio não têm a ver com mérito ou capacidade preexistente, mas com acesso político”, explica Ricardo Soares de Oliveira em entrevista à Agência Pública.
Numa longa entrevista do investigador da Universidade de Oxford, conduzida pela jornalista da agência brasileira, Pública, Ricardo Soares de Oliveira fala do potencial de Angola vs os benefícios que o povo adquiriu desse potencial.
No seu livro “Magnífica e miserável: Angola desde a guerra civil” descreve essa realidade angolana.
Leia a 3ª parte da entrevista:
E sente-se uma atmosfera repressiva. Tanto que no seu livro você não coloca o nome de muitos entrevistados…
A ideia de que Angola é um Estado autoritário é uma visão comum em Portugal, mas no Brasil muitos dos seus leitores poderão pensar que, como é um Estado que tem oposição e eleições de quatro em quatro anos, por conseguinte, seja o que for isto, não é uma ditadura. Mas é importante enfatizar: em Angola o MPLA desde 2002 é a força hegemônica do país. É o partido que controla o Estado – aliás, não há grande diferença entre o Estado e o partido. E, como eu disse no começo desta entrevista, o presidente José Eduardo dos Santos tem um poder individual muito grande.
Nesse sentido, não há muito espaço de manobra para as pessoas expressarem visões diferentes. Isso não significa que as pessoas estejam sujeitas à repressão o tempo todo. E nesse sentido, nos últimos dez anos, eu diria que a autocensura foi muito mais importante do que a repressão aberta. Essa autocensura é eficaz porque, mesmo quando a maioria dos angolanos percebe que o regime está “dócil”, está “dócil” porque não vê rivais. Assim que o regime sente que existem rivais, volta a posturas muito mais duras. E, nesse sentido, em 2015 nós temos não apenas este caso dos “revus”, os 15 ativistas que foram presos, mas a condenação de Rafael Marques, a condenação do ativista Marcos Mavungo em Cabinda, o massacre no Huambo, no monte Sumi…
Você vê um endurecimento.
Claramente.
Por quê?
Em larga medida porque o preço do petróleo caiu 60%. E a legitimidade desse regime depende da sua capacidade de distribuir recursos a grupos sociais específicos de cujo apoio ele necessita. Isso não quer dizer que tudo estivesse bem até o ano passado. Pelo menos a partir de 2012 houve uma espécie de “reacordar” angolano.
Esta sociedade que estava apática entre 2002 e 2012, em que as pessoas estavam quase que felizes apenas por estarem vivas, por não terem morrido na guerra, começou a mostrar-se mais exigente, nomeadamente os jovens, para quem a guerra já não é o ponto de referência.
Os jovens que veem toda essa riqueza à sua volta, mas que não têm acesso a essa riqueza, saíram a criar problemas e exigir. Mas tudo isso era ainda fácil de gerir há um ano porque o regime tinha muito dinheiro. Agora o regime tem pouco e está a pedir emprestado ao Goldman Sachs, à China, ao Banco Mundial, está a pedir emprestado a toda a gente.
Pelo visto o preço do petróleo não vai aumentar…
Sabe, prever o preço do petróleo é um pouco como prever ficção científica, não é? Mas pelo menos a grande maioria dos especialistas prevê que o preço do petróleo vai se manter baixo pelo menos mais dois anos, talvez mais quatro anos. Isso, para Angola, é muito mau porque Angola é dos Estados mais dependentes do petróleo do mundo: 96% das receitas de exportação vêm do petróleo. Ou seja, o que acontece ao petróleo tem um efeito imediato em toda a economia, em toda a sociedade angolana.
É óbvio que não podemos falar de Angola como se estivéssemos a falar do Chile de Pinochet, mas estamos a falar de um Estado autoritário à sua maneira
Há grupos empresariais que sempre acabam apoiando o regime. E uma das consequências é que a atuação deles tem mais a ver com oportunidades políticas. Você diz no seu livro que os grupos empresariais em Angola não se especializam, o que parece ser o caso da Odebrecht, que tem desde contratos de construção até concessões de minas de diamante e supermercados…
A economia angolana é inteiramente política, e as oportunidades de negócio não têm a ver com mérito ou capacidade preexistente, mas com acesso político.
Por conseguinte, em Angola, se uma companhia se torna íntima do poder, essa companhia vai ter acesso a praticamente qualquer oportunidade que apareça. Podem ser oportunidades da sua área de especialização inicial, por exemplo, a construção civil, mas podem ser diamantes, podem ser restaurantes, podem ser hotéis, podem ser import/export, podem ser agricultura, pode ser seja o que for. E nesse sentido a lógica da Odebrecht em Angola é a mesma lógica das companhias de construção portuguesas e israelitas, ou outros grupos estrangeiros importantes. O único setor em que há uma certa especialização é o petróleo. Mas essas companhias do petróleo é que são exceção. A regra é a trajetória da Odebrecht. É claro que a Odebrecht, sendo uma presença já muito antiga no país, e tendo uma relação particularmente privilegiada com o palácio presidencial, teve acesso a essas oportunidades a uma escala muito diferente de outros operadores em Angola.
Dá para dimensionar o tamanho e a influência da Odebrecht em Angola?
Eu penso que a Odebrecht não tem influência suprema em Angola. Quem manda são os angolanos, quem manda é o regime, e a Odebrecht é uma parceira das pessoas que mandam. Isso gerou para a Odebrecht esse estatuto de insider, mas o controle político sempre esteve nas mãos do regime. A Odebrecht, nesse sentido, nunca foi um Estado dentro de um Estado, mas uma companhia ao serviço dos mandatários políticos. Como é assim em todos os países, aliás. Em relação à verdadeira importância da Odebrecht, no ano passado era a maior empregadora do setor privado em Angola.
A partir daí dá para ver que o footprint é absolutamente gigantesco. Estamos a falar em talvez mais de 20 mil empregados. Mas, além disso, há dimensões desse planeta Odebrecht em Angola interessante para mim como acadêmico, mas também para jornalistas. Por exemplo: qual foi o papel dos investimentos no setor agrícola de Malanje, que são projetos que não rendem dinheiro, não são lucrativos? São projetos talvez seguidos por razões políticas, talvez para agradar ao poder político angolano, e não porque são viáveis por si mesmos.
A Odebrecht é mais importante que a embaixada brasileira? A diplomacia vem a reboque dessa relação empresarial?
Eu penso que esse é um problema em toda a África. A conversa do Brasil em África é toda pública e a realidade é toda privada. Há um grande investimento retórico na irmandade dos povos lusófonos e uma grande proximidade cultural, rica, entre Angola e o Brasil, mas na verdade no terreno a presença do Estado brasileiro e das iniciativas públicas é muito reduzida, e quem está verdadeiramente na vanguarda da presença brasileira, não somente em Angola, mas no resto dos países, é o setor privado. Por conseguinte, Angola, sendo talvez o maior parceiro econômico do Brasil em África, é apenas um exemplo avançado dessa lógica em que o presidente Lula definiu a África como prioridade, mas o resto da estrutura do Estado brasileiro não acompanhou essa prioridade.
Uma estratégia interessante de influência internacional do governo angolano, pouco conhecida aqui no Brasil, foram os investimentos em Portugal. Há investimento da Sonangol e da Isabel dos Santos, por exemplo, em telecomunicações, TVs, empresas e energia, jornais. A Isabel acabou de comprar os direitos para a edição portuguesa da revista Forbes, a mesma que publicou um perfil que questionava a origem da sua fortuna… Qual é futuro dessa ascendência da elite angolana sobre Portugal e outros países europeus?
As relações entre Portugal e Angola aprofundaram-se nos anos 1990, depois de um período de ressaque pós-colonial. Lisboa tornou-se uma cidade importante para a elite angolana, através de investimentos, serviços financeiros, educação para os filhos etc. Mas nessa altura Angola estava em guerra, e Portugal, a crescer muito rapidamente. A dimensão angolana era marginal para a economia portuguesa. Nos últimos dez anos, e particularmente a partir de 2008, a dinâmica mudou. Portugal entrou em crise econômica, ao passo que a economia angolana cresceu dez vezes. Os angolanos ricos usaram essa fortuna recentemente adquirida para comprar muitas empresas em Portugal (bancos, meios de comunicação, energia etc.) e adquiriram influência na vida portuguesa.
Mas a partir de 2013 essa presença é cada vez mais questionada: por angolanos que querem saber de onde vem todo esse dinheiro que os seus ricos investem no estrangeiro (não apenas em Portugal), mas também da sociedade civil portuguesa, preocupada com possível lavagem de dinheiro e excessiva influência política da elite angolana. O caso de Isabel dos Santos é paradigmático. Como filha do presidente, ela é o que a OCDE chama de “pessoa politicamente exposta”, mas não tem existido escrutínio suficiente sobre as origens do capital de investimento. E claro que não se pode partir do princípio de que todo investidor angolano é suspeito, mas colocar as questões legalmente obrigatórias (o chamado due diligence) é absolutamente essencial. E isso não tem sido feito. Finalmente, não se pode separar a questão da influência angolana em Portugal (e em Inglaterra, França etc.) de uma dinâmica generalizada: os países autoritários gostam de comprar influência nas capitais europeias (este é ou foi o caso da Rússia, China, Líbia, Catar, Arábia Saudita etc.) como forma de criar apoios.