Apenas uma proposta para um debate sobre o Cabo Verde de hoje e de amanhã, sem a imposição por decreto do que chama de "reafricanização dos espíritos" que tem dominado o arquipélago nos últimos 50 anos.
Quem o o diz é o antropólogo, investigador e escritor cabo-verdiano Manuel Brito-Semedo no programa Artes, da Voz da América, no qual aborda a sua mais recente obra "Cabo Verde: Ilhas Crioulas - Da Cidade Porto ao Porto-Cidade", com uma investigação sobre a formação da crioulidade, entre os séculos 15 e 19.
"O mais importante para o presente e o futuro é sabermos quem somos, importante para formar toda essa construção da cabo-verdiana é amanha, o amanhã da modernidade", diz Brito-Semedo, quem assume ter procurado questionar a "narrativa imposta por decreto depois da Independência Nacional (1975)", porque "não se pode impor a identidade de um povo", dando-lhe um "destino africano".
"Eu quis contrastar dois momentos: quando Cabo Verde se ligou ao mundo, uma primeira vez, pelo navio, pelas caravelas e pelas naus com escravos e depois um segundo momento foi pelo barco a vapor, no século 19. Nesse intervalo, é que se formou e se construiu essa cabo-verdianidade", assegura aquele professor universitário na reforma.
Em busca do debate
O livro tem suscitado muitas reações.
O Presidente da República, numa nota na sua página no Facebook, diz ter lido "de um trago" a obra e "embora discorde de muitas das conclusões do autor, são escritos que merecem ser lidos.
José Maria Neves lembrou que "o debate deve ser feito com serenidade e abertura de espírito".
O escritor e prémio Camões Germano Almeida publicou na sua coluna semanal no jornal A Nação que "em vez de denegrir Brito-Semedo, deveríamos antes louvá-lo pelo seu Cabo Verde - Ilhas Crioulas. Deixados em África ou fora dela, o certo é que ele brindou-nos com um excelente manual de divulgação das nossas ilhas. Se quis realmente escrever um livro de eventual contestação, acabou escrevendo um livro de exaltação ao que somos".
E conclui: "Se Brito-Semedo, com o seu livro, se permitisse dizer a Cabo Verde, finalmente dei-te uma identidade, Cabo Verde certamente responderia, Finalmente não, mas uma vez mais".
As críticas foram mais fortes nas redes sociais, com pessoas, até com alguma visibilidade social, a considerar que Brito-Semedo faz a "apologia do colono", ao tentar "branquear a história".
A crioulidade numa sociedade compósita
O autor responde lamentando que as pessoas não escrevem, "os professores universitários não vão aos jornais, não publicam livros, não opiniam" e, por isso, repetindo uma frase que usou na apresentação do livro em São Vicente diz que "podem atirar-me pedradas, mas não acertam em mim, escrevam e apresentem outras teses”.
Aquele antropólogo, que trabalha com a memória e que tem várias obras publicadas, afirma não ser "verdade que temos uma origem única", porque "temos o triângulo da nossa identidade".
A "reafricanização dos espíriritos levou-nos a um discurso único, com uma identidade única, esquecendo que nós somos crioulos, uma identidade compósita", afirma Brito-Semedo quem diz provar essa tese na obra.
Para ele Cabo Verde "apresenta característas únicas, como uma religião única, a religião cristã, uma língua única, o máximo que conseguimos fazer com esta mistura, um folclore só nosso, temos muitas misturas que não podemos separar, a tradição oral é única, a gastronomia, por exemplo...".
Para ele, as ilhas de São Tomé e Príncipe são assumidamente africanas, por muitas razões, "entre elas um segundo povoamento com pessoas do continente, inclusive de Cabo Verde, mas nós não porque somos abertos principalmente a partir do Porto de São Vicente".
A obra aborda os primórdios da Cidade da Ribeira Grande, conhecida por "Cidade Velha", cujo porto serviu de chegada de portugueses e escravos de várias etnias africanas, até o esplendor do Porto de São Vicente, no auge do negócio do carvão.
A crioulidade, que Brito-Semedo diz ser compósita, tem a sua extensão também nas comunidades emigradas espalhadas pelo mundo e que, segundo ele, "foram sofrendo mudanças, e é normal".
E afirma: "Dizer à comunidade cabo-verdiana emigrada nos Estados Unidos, que se formou desde o século 19, que a nossa identidade é africana choca, na nossa identidade temos a componente africana, mas não podemos dizer que as ilhas de Cabo Verde são africanas... sempre dissemos que somos cabo-verdianos, uma cultura crioula".
Na conversa, o autor diz, ao apresentar uma tese alternativa, "esperar que tranquilamente possamos refletir sobre isso", nas vésperas do 50. aniversário da Independência Nacional que se celebra no próximo ano.
Natural de São Vicente, Manuel Brito-Semedo tem na sua bibliografia Falucho (Rosa de Porcelana Editora, 2022), A Advocacia em Cabo Verde (Livraria Pedro Cardoso, 2020), Morna: Música Rainha de nôs terra, coleção de 5 livros + CD (Ed. A Bela e o Monstro, Edições, 2019); Representação Social do Médico em Cabo Verde (Pedro Cardoso Livraria, 2018); Na Esquina do Tempo – crónicas do Expresso das Ilhas (Ed. Expresso das Ilhas, 2017); Na Esquina do Tempo – crónicas de Mindelo (Ed. Ponto & Vírgula, 2014); Na Esquina do Tempo – crónicas de diazá (Ed. Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2009); A construção da Identidade Nacional – análise da imprensa entre 1877 e 1975 (Ed. Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2006); A Morna-balada – o legado de Renato Cardoso (Ed. Instituto da Promoção Cultural, 1999); A colocação dos clíticos no Português em Maputo (Maputo, 1997); e Caboverdianamente Ensaiando, vols. I e II (Ed. Ilhéu Editora, 1995 e 1998).
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