A invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 gerou uma crise global de energia e alimentos que atingiu duramente a África e que colocou em causa ainda mais os fracos sistemas multilaterais e regionais destinados a proteger os direitos humanos no continente.
A conclusão é do Relatório do Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2023, da Amnistia Internacional (AI), divulgado nesta terça-feira, 28, no qual acrescenta que a guerra também expôs a falta de respostas consistentes às crises em todo o mundo.
Moçambique é apontado como cenário de muitas violações devido à guerra em Cabo Delgado e Angola é destaque pela crise de insegurança no Sul que foi "uma das maiores do mundo".
Embora os governos ocidentais, bem como alguns africanos, tenham reagido com força à agressão do Kremlin na Ucrânia, a AI afirma que eles não tiveram uma reposta com a mesma força ante as graves violações cometidas em países africanos, incluindo Moçambique, Burkina Faso, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Etiópia e Mali.
Num comunicado enviado à imprensa, a AI diz que o "estado dos direitos humanos no mundo encontrou padrões duplos e respostas inadequadas aos abusos dos direitos humanos alimentaram a impunidade e a instabilidade".
"Fracasso das instituições"
A organização de defesa dos direitos humanos conclui que esforços de recuperação da pandemia de Covid-19 foram prejudicados "por conflitos, choques económicos decorrentes da invasão da Ucrânia pela Rússia e condições climáticas extremas e exacerbadas pelas mudanças climáticas".
Em consequência, os direitos de milhões de pessoas à alimentação, saúde e um padrão de vida adequado "foram seriamente prejudicados em todo o continente africano".
O relatório também destaca o "fracasso das instituições globais e regionais, incluindo o Conselho de Segurança da ONU e a União Africana (UA), em responder adequadamente a crimes cometidos sob o direito internacional em países como China, Mianmar e Iémen", bem como na Etiópia, Burkina Faso e Sudão do Sul.
“Enquanto a atenção da comunidade internacional se voltou para a Ucrânia, a África continuou a sofrer com o flagelo dos conflitos, que provocaram sofrimento e deslocamentos em massa de pessoas em países como Burkina Faso, Camarões, República Centro-Africana, Etiópia, Mali, Moçambique, Sudão e África do Sul", escreve Samira Daoud, directora da AI para a África Ocidental e Central.
Insegurança alimentar grave em Angola
Para ela, “a África já enfrentava uma longa e lenta recuperação da Covid-19, mas a guerra russa em curso na Ucrânia resultou num aumento dos preços globais do petróleo, o que elevou o custo das matérias primas, tornando difícil para as pessoas comuns comprar comida e necessidades básicas".
Daoud acrescenta que "muitas pessoas mal sobrevivem em economias frágeis como Zimbabwe, Libéria e Sudão do Sul, e isso comprometeu os direitos socioeconómicos das pessoas”.
O relatório comprova que a insegurança alimentar piorou devido à invasão da Ucrânia pela Rússia e à seca em vários países africanos, deixando muitas pessoas em situação de fome aguda, incluindo Angola, Burkina Faso, República Centro-Africana, Chade, Quénia, Madagáscar, Níger, Somália, Sudão do Sul e Sudão.
Em Angola, por exemplo, "a insegurança alimentar nas províncias do Cunene, Huíla e Namibe foi das piores do mundo e em algumas destas zonas, adultos e crianças recorriam a comer talos de erva para sobreviver", diz a AI.
"Falha vergonhosa de liderança abre caminho para novos abusos"
A AI sustenta que a invasão da Ucrânia e os conflitos em vários países da África Sahariana revelaram um "terrível fracasso das lideranças em resolver esses conflitos".
No continente africano, com a comemeração do 20º aniversário da UA, a AI esparava que a organização redobrasse os seus esforços para dar uma respostas às crises e à luta contra a impunidade e levar em frente o seu "ambicioso objectivo de 'silenciar as armas' e livrar o continente do flagelo do conflito até 2030".
"Em vez disso, a resposta da União Africana às graves violações e abusos dos direitos humanos cometidos em conflitos em toda a região foi ausente ou tímida no melhor", aponta o relatório que destaca o caso de Moçambique.
Violações sem responsabilização em Moçambique
Nesse país, a AI reitera que o grupo armado que se autodenomina Al-Shabaab "cometeu crimes de guerra decapitando civis, raptando mulheres e meninas, saqueando e incendiando aldeias no norte do país".
Como exemplo, aponta que, a 21 de Maio de 2022, o grupo atacou" as aldeias de Chicomo, Nguida e Nova Zambézia, no distrito de Macomia, queimou casas, saqueou colheitas, decapitou 10 pessoas e raptou mulheres e raparigas".
O director da AI para a África Oriental e Austral, escreve que “a impunidade de longa data para as violações dos direitos humanos de Burkina Faso à República Centro-Africana, da Etiópia ao Sudão e de Moçambique aos Camarões adicionou combustível ao fogo dos conflitos e violações dos direitos humanos na África, e as entidades estatais e não estatais não podem continuar a violar impunemente os direitos humanos e o direito humanitário internacional".
Tigere Chagutah reforça que "deve haver consequências para as violações dos direitos humanos” e sublinha que “as partes em conflitos armados devem proteger os civis, pondo fim aos ataques deliberados a civis e à infraestrutura civil e aos ataques indiscriminados, devem também facilitar o acesso seguro e desimpedido à assistência humanitária para as populações em risco”.
O relatório cita os conflitos em vários países africanos e aponta o dedo aos seus responsáveis, ao mesmo tempo que critica a falta de iniciativas e de capacidade para pôr fim a esses conflitos.
Nota positiva, apesar das violações registadas, para o acordo mediado pela UA entre a Etiópia e a Frente de Libertação do Povo do Tigray, em Novembro de 2022, e que pôs termo a um brutal conflito de dois anos.
No entanto, a organização "permaneceu assustadoramente silenciosa enquanto o governo etíope continuava a desacreditar e negar o acesso à Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, Comissão de Inquérito sobre a Situação na Região de Tigray", diz a AI que realça o facto de, ao mesmo tempo, o acordo ter ignorado "a impunidade desenfreada no país e falhou em oferecer um guião claro sobre como garantir a responsabilização por crimes de guerra e crimes contra a humanidade".
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