Quando se entregar ao trabalho de passar para um livro a sua experiência sobre o 27 de Maio, o historiador Carlos Pacheco deverá fazer constar, por exemplo, o cara a cara que teve nos aposentos do ministério da Defesa, com intelectuais como Ndunduma, Pepetela, que segundo suas palavras faziam parte da equipa que o interrogou.
Pacheco diz ainda assim que o que lhe move em relação ao 27 de Maio, não é o revanchismo, mas o imperativo de se dar memória às vitimas. ....Numa entrevista que concedeu a Voz da América , Carlos Pacheco falou da sua detenção, da sua suspensão pelo MPLA e do fraccionismo. Ainda assim o pensamento de Carlos Pacheco não se resume ao papel de alguns intelectuais. Ele abrange os desvios de linha do MPLA, o sonho que alimentava então o movimento e o comportamento dos chamados fraccionistas.
Voz da América- Retenho, da carta aberta que escreveu a Pepetela há um ano, e da carta dos irmãos Vandúnem também escreveram a Pepetela, retenho, dizia, algum desencanto, e se calhar ressentimento em relação a Pepetela, e até mesmo em relação a muitos intelectuais. O que de concreto do seu lado?
Carlos Pacheco- Da minha parte não há ressentimento nem desapontamento. Não me confrontei com a declaração de Pepetela, eivado desse sentimento. A minha posição é diferente. Entendo que uma pessoa como Pepetela, com o prestígio de que goza, enfim pelos pergaminhos que o cercam , tem que esclarecer de uma vez por todas, aquilo que foi o seu papel, a sua acção nos acontecimentos do 27 de Maio. Não só a comunidade angolana exige que ele preste este esclarecimento, como a própria história. Quer ele queira quer não, ele será sempre acossado.
P- O que ele disse há um ano não basta?
R- Não. Ele ainda não esclareceu absolutamente nada. O facto dele agora vir dizer que está isento de qualquer responsabilidade em toda aquela maldita trama do 27 de maio, é absolutamente insuficiente. Diria até que é uma forma de descartar responsabilidades. Dizer que o seu papel circunscreveu-se apenas a um trabalho dentro de um núcleo que seleccionava informações que depois eram canalizadas para os órgãos de informação...muito bem, eu acredito, mas ele não fez só isto.
P- Que mais terá feito?
R- Ele participou de interrogatórios .Ele esteve diante de mim, esteve totalmente envolvido com aquele interrogatório que foi um verdadeiro processo de achincalha. Eles tentaram achincalhar-me moralmente, ameaçaram-me. Eu não ouvi da parte do Pepetela uma ameaça. Ele nunca preferiu uma ameaça, eu não ouvi. Outras pessoas como Ndunduma,o preferiram. O Ndunduma , já contei isto num artigo há uns anos, num dado momento levantou-se abruptamente, foi ao exterior da sala, e quando regressou fazia-se acompanhar do comandante Rui Matos e de outros militares. E antes do comandante Rui Matos ter falado, o Ndunduma disse que se eu não prestasse as declarações que aquelas pessoas estavam desejando que eu prestasse , os militares tratariam de mim. Aquilo foi uma sessão de humilhação acusaram-me de muitas coisas, de ser da CIA, do KGB.. Foi uma sessão que o próprio Pepetela terá que esclarecer, porquê é que ele estava ali. A postura moral dele perante os acontecimentos do 27 de Maio tem que ser muito bem explicada por ele. Eu faço a seguinte pergunta: o Pepetela não sabia que a maioria das pessoas, senão a totalidade, estavam naquela situação de presos ilegais, porque tinham sido sequestrados, privados ilegalmente da sua liberdade? Tenho dúvidas que uma só pessoa que fosse, tivesse sido presa por mandato judicial. Ninguém.
P- Afinal em que circunstâncias foi parar à cadeia, era parte de alguma coisa?
R- Eu não era parte de nada. Desenvolvia a minha actividade como militante do MPLA de uma forma muita empenhada, muito abnegada. O nosso ideal, falo por mim e pelos companheiros que faziam parte da minha célula ou do comité dos intelectuais revolucionários apenas era o de alcançar o céu pela mão do máximo dirigente do país e do partido que era o presidente Agostinho Neto. Vivíamos embalados pelo sonho de alcançarmos o céu ou de vivermos num país de terra e mel, de abundância, num país onde houvesse liberdade individual etc, etc. O nosso sonho era este. E acreditávamos nisso, especialmente na pessoa do presidente Agostinho Neto. Tudo isto foi desfeito pelo desvario daqueles dirigentes. Eu não estou a imputar culpas ao Presidente Neto. Ele teve culpas, e tem que assumir, ou por outra, a história já está a atribuindo responsabilidades ao presidente Agostinho Neto.... ele representava a cúspide daquele sistema.
P- Você esteve de alguma forma associado àquilo que se convencionou chamar de movimento fraccionista?
R- Não , não estava associado. Estou perfeitamente à vontade. Digo com a consciência tranquila que não estava associado a nada. Acompanhava as discussões, estive de facto integrado por vezes em núcleos de discussão , mas sempre dentro do MPLA. Estive associado a discussões dentro do MPLA, sobre arejamentos que se impunha fazer dentro do MPLA, sobretudo depois de algumas assembleias que nos frustraram, assembleias que houve no DOM Regional, presididas por Lúcio Lara em que tomamos conhecimento de que toda a pirâmide de organização do MPLA- comités do sector terceário, do sector operário- estava a ser desarticulada, desfeita –quando até ali, a grande pirâmide de organização estabelecia ligações entre os vários órgãos. Tudo isto iria deixar de existir. Numa dessas assembleias colocamos estas questões, porque tendo a pirâmide funcionado bem, colocamos dúvidas atrás de dúvidas.. Estou convencido que a maior parte dos que acabaram por ser sacrificadas no 27 de ;aio, foram-no porque colocaram muitas dúvidas. .E eu era daqueles militantes que tinha muitas dúvidas..
P- Qual era a sua posição em relação ao fraccionismo?
R- Eu não concordava com actividades marginais às estruturas do MPLA. Nunca concordei, e nunca participei delas...Havia uma estrutura, e era dentro dela que tínhamos que colocar os problemas. Não havia razões para acusarem a mim e a outros camaradas de participação em actividades fraccionistas, de termos uma atitude anti-MPLA. Não houve razões. Ninguém participou em actividades fraccionistas. As pessoas discutiam, o que era diferente.. eu agora pergunto se era proibido discutir.
P- Quem foi que o prendeu, quem o foi buscar à casa.?
R- Eu não gosto de utilizar a palavra prender. Eu fui sequestrado, fui privado da minha liberdade. Ninguém me apresentou mandato legal. Estive confinado durante dois anos e meio sem poder constituir advogado, milhares de pessoas encontraram a morte sem ter podido constituir a sua defesa. Inclusive , houve pessoas fuziladas cujas sentenças só foram ditadas depois das execuções. Então o que ocorreu foi toda uma forma ilegal de matar as pessoas...Ninguém foi julgado com base em preceitos jurídicos, logo as pessoas foram sequestradas.
P- Foi detido, ou sequestrado como diz, quantos dias depois do 27 de Maio?
R- Quatro ou cinco dias. Eu apresentei depois das coisas terem serenado relativamente. Na verdade a situação nunca serenou porque as matanças se perpetuaram. É que não se matou só nos dias subsequentes. Mesmo em 1979 quando Neto vai a Libéria, nos campos de trabalho, preparavam-se a morte de militantes do MPLA. Abriram-se valas para se matarem militantes do MPLA. Mais mortes não aconteceram porque Neto voltou traumatizado desse conclave de chefes de estado africanos, pois foi acusado de estar a dar a benção àquela carnificina. E só parou quando regressado a Luanda, ele começou a fazer grandes depurações, primeiras nos órgãos da DISA.
P- É do 27 de Maio que decorre o seu afastamento do MPLA?
R- Não, não a minha saída aconteceu antes, infelizmente. ́É uma coisa que tem que ser vista, não no que diz respeito particularmente à minha pessoa, mas às perseguições que se começaram a fazer a a militantes da organização. Eu fui detido durante 24 horas no dia 21ou 22 de Outubro de 1976, sob nenhuma alegação. Simplesmente detiveram-me. Telefonaram-me a dizer que havia livros para mim no ministério da Defesa. Achei estranho, suspeitei mas lá fui, fazendo-me acompanhar de um jornalista que se aproximou do ministério da Defesa. Pois as pessoas que estavam esperando por mim, foram atrás de mim. Meti-me num carro, dei uma volta pela cidade , fui à casa de um amigo, e telefonei para alguém do mais alto escalão do partido , que me conhecia, e com quem trabalhei quanto tive tarefas junto do presidente Agostinho Neto. Nessa corrida pela cidade com a DISA na minha cola, subi para o apartamento de um amigo, de onde liguei para o Mbinda. Ele próprio não entendeu o que se estava a passar. Disse-me, “Pacheco desce, e depois logo se vê o que acontece. Estive preso durante 24 horas, sendo solto por intervenção decisiva do comandante Nzaji que me perguntou o que estava ali a fazer. Eu respondi-lhe dizendo, que eu é que gostaria de saber o que estava ali a fazer.. Soltaram-me duas horas depois sem que antes o agente que me veio comunicar a notícia me dissesse. “Vai para a casa, e tem juízo” . Fiz uma representação aos órgãos superiores do movimento , ao DOM Regional a pedir explicações, nunca me responderam, e partir de então fiquei suspenso do MPLA enquanto decorressem as averiguações. As averiguações nunca tiveram fim, até que sobreveio o 27 de maio. Logo, eu já estava suspenso. Então, houve todo um processo persecutório contra vários militantes..
P- Deixa-me fazer aqui uma provocação. Regressaria um dia ao MPLA?
R- Não sei , não sei.. estas coisas não dependem apenas de mim. O MPLA constituiu uma opção individual ditada pela condição de homem que nasceu naquela cidade de Luanda, nos Coqueiros, que teve toda uma relação de companheirismo , uma relação cultural com pessoas que sentiam o MPLA. Desde muito garoto que eu sentia o MPLA porque me relacionava com pessoas que tinham as suas esperanças cravadas no MPLA. Eu, todos aqueles adolescentes que depois vieram a ser dirigentes do MPLA, como o Ngongo. Eram meus amigos ....então respirava toda esta cultura, eu cresci dentro da cultura do MPLA. Depois de tudo quanto aconteceu e dos sofrimentos que causou., etc etc.. diria que não estou gangrenado por um sofrimento...sou um historiador que procura analisar todas estas questões, entendê-las e escrever. Na questão do 27 de maio, a minha grande preocupação é sensibilizar os órgãos dirigentes do MPLA afazwer algo pelos desaparecidos, é ajudar a devolver a memória aos desaparecidos do 27 de Maio.
O problema de fundo já não é tanto saber se houve golpe ou não. O problema é devolver a memória dos desaparecidos. Muitos salvaram-se, eu fui um dos sobreviventes, mas a maioria desapareceu. Não se sabe onde estão estas pessoas, onde estão os seus restos mortais. Eu vou continuar empenhado nesta luta. E por isso mesmo, voltando ao Pepetela, eu digo sempre, tal como o interpelei na carta aberta, qual foi a sua postura moral? Eu quero saber se ele não tinha conhecimento que estavam prendendo pessoas ilegalmente; eu pergunto se ele não tinha conhecimento que estavam a praticar massacres autorizados, para usar uma expressão do sociólogo, Lee Hamilton. O Pepetela não sabia disso? Sabia! Ele não sabia que havia milhares de pessoas confinadas nos porões da DISA, sem o mínimo de assistência jurídica? Ele não sabia disso? Sabia! Ele sabia dessas coisas todas! Porque que não fala hoje? Porque que pelo menos não diz, ‘de facto sabias destas coisas, e participei”! Ele continuou participando, continuou no ministério da Defesa, onde aconteceram coisas horríveis. Ele e outros, diariamente eram confrontados com realidade inomináveis, e que eu saiba, ele foi até ao fim. Ele não foi um sujeito ausente. Então, sem ressentimentos ele terá que explicar, não a mim, mas ao país, à colectividade angolana, à história, qual foi o seu papel nos acontecimentos do 27 de Maio e no que se seguiu ao 27 de Maio.. É isto que se lhe exige, sem o menor ressentimento. Tenho dito que não estou tomado do menor espírito de vingança. Não há o menor espírito de vingança. Quero é que se faça verdade, e isto já me custou alguns dissabores.. que os assassinos não sejam levados a juízo. A história se encarregará de os condenar..
P- Pacheco, põe-se sempre o problema dos que morreram às mãos dos outros.
R- Quando falo de desaparecidos , falo de todos indistintamente. Falo dos que foram mortos pelos órgãos repressivos da DISA, pelos órgãos repressivos das forças armadas, como também daqueles que foram mortos pelo grupo de Nito Alves, que, que eu saiba não foram assim tantos. Os crimes de lesa humanidade foram praticados pelos órgãos repressivos do estado.
P- Alguma vez se confrontou cruzou pessoalmente ,ou falou com o Ndunduma, Pepetela.. sobre tudo isto?.
R- O Ndunduma chamou-me uma vez, não direi logo após a minha saída da prisão após 1979.. mas, mais tarde. Encontramo-nos na tipografia Lito-tipo que eu frequentava por amizade a um dos seus proprietários e também porque foi ali que os meus primeiros livros foram impressos. E uma vez disse que queria falar comigo. Convidou-me a ir a casa dele, e eu acedi. Ele mostrava-se muito preocupado em dizer qual tinha sido o seu papel junto do Presidente para que muitos de nós fossemos poupados ao suplício do 27 de Maio. Falou sempre em nome pessoal, dizendo que tinha tido uma acção junto do presidente para que muito de nós não fossem mortos. Muito bem. E depois? Posso apontar como um gesto nobre, se assim se verificou., E o resto? Posso ter sido uma das pessoas contempladas por este gesto, mas isto tem muito pouca importância no conjunto do que se passou no 27 de maio...e as mortes aos milhares que aconteceram? Vamos esquecer tudo isto? Aliás , ultimamente, e eu já escrevei um artigo que vai sair por estes dias que se chama “A teoria da culpa colectiva”, tem-se avançado com a teoria de que todos foram culpados. Diz-se que ninguém está isento de culpas, que todos mataram, tanto de um lado como de outro ,e que o melhor o mais sensato, é esquecer tudo. As pessoas que defendem esta teoria dizem que é bom como corolário é bom que se atribua um generoso perdão a todos. Não concordo , e acho que é uma teoria muito perversa.
P- Alguma vez se encontrou com Pepetela?
R- Cruzei-me várias vezes, mas nunca falamos. Conversei com Ndunduma. Não conversei com Manuel Rui Monteiro, Diógenes Boavida ou com Ambrósio Lukoki. Encontrei-me também com Paulo Jorge. Ele esteve presente naquela sessão inquisitorial, é o nome que eu atribuo àquela sessão. Pretendeu-se humilhar-me, e envolveler-me no golpe de estado. Houve um momento em que o próprio Diógenes Boavida atribuiu-me o papel de mentor ideológico do golpe de estado. Perguntei-lhe estupefacto, que apresentasse provas, e tudo acabou por se restringir a perguntas sobre o meu trabalho junto do presidente Neto, não sobre a minha militância, e sobre uma possível acção fraccionista da minha parte. Quanto ao Paulo Jorge direi que foi muito elegante, muito cavalheiresco mesmo. O encontro proporcionou-se porque fui a Benguela, e ele convidou-me a jantar. No decorrer daquela refeição que foi demoradíssima tivemos ocasião de conversar detidamente. Ele foi muito magnânimo, e apenas disse isto..:. “tudo quanto aconteceu poderia ter sido evitado. Foi um desastre. Você acabou por ser uma das vítimas. Eu a título muito particular, peço-lhe perdão por tudo quanto fizeram consigo.” O Paulo Jorge disse-me isto à mesa. Teve este gesto de grande nobreza. Estávamos só nós os dois.